segunda-feira, 31 de outubro de 2011

“O povo negro deu uma nova perspectiva às religiões cristãs”. Entrevista especial com Clóvis Cabral - Padre Jesuíta




IHU On-Line – Conte um pouco sobre sua descendência. Como ela influenciou sua escolha pelo catolicismo?

Clóvis Cabral – Minha mãe é uma ialorixá, sacerdotisa do candomblé e, por isso, eu vivi minha infância e adolescência no candomblé. Ialorixá pode significar três coisas que se resumem numa só: pode ser compreendida como esposa de Orixá; pode ser entendida como zeladora, protetora; e outro significado é mãe-de-santo, que acrescenta um elemento ao sacerdócio no candomblé. Eu seria metade do sacerdote que sou se não tivesse aprendido esse jeito de ser sacerdotisa que minha mãe tem. Além da faculdade de Filosofia e Teologia que nós, jesuítas, recebemos, eu também fui formado no terreiro por minha mãe e pela comunidade religiosa em que vivi um bom tempo de minha vida. Foi no terreiro que eu aprendi a rezar, aprendi as noções de fé. Minha catequese foi feita nesse ambiente religioso, que é diferente de uma paróquia. Você não precisa ir fazer catequese num dia determinado da semana. No terreiro, toda a comunidade é educadora. O processo educativo numa comunidade terreira é muito mais rico do que essa noção mestre e aluno.

Durante um bom tempo também tive contato com a Igreja Católica. Em Salvador, é muito comum essa convivência com as duas religiões. No meu caso, minha mãe era muito amiga de uma senhora que era o braço promocional, educacional e evangelizador da Paróquia local. Havia uma escola comunitária pertencente à paróquia, na qual eu fiz meus estudos. Lá participei da catequese típica de uma paróquia e fiz a primeira eucaristia. Mais tarde, entrei num grupo de jovens, mas nunca perdi a vinculação com o candomblé. Lembro de uma festa para comemorar o dia das mães que a gente fez no grupo de jovens e lá estavam presentes as minhas duas mães, Dona Odocrinalina, católica, e Dona América, ialorixá. Mais tarde fui ouvir perguntas como: como vocês podem estar juntos? Parece que as pessoas se ofendem com a capacidade que outras têm de conviver. Já minha aproximação com os jesuítas deu-se no final dos anos 1970, quando a Igreja tomou a decisão de se dirigir mais aos pobres. Alguns jesuítas foram morar na minha comunidade e ficaram amigos de minha mãe e, por conseqüência, meus também.

IHU On-Line – O senhor tem irmãos? E como eles vêem a inter-religiosidade da família?

Clóvis Cabral – Nós somos 16 irmãos e praticamente todo mundo lá em casa tem algum grau de iniciação no candomblé. Meu irmão mais velho é babalorixá e os outros irmãos e irmãs participam de alguns cargos na hierarquia de um terreiro. Todos os mais velhos tiveram a educação entre o candomblé e o catolicismo. Foi meu irmão mais velho que me convidou, por exemplo, para participar do grupo de jovens da Paróquia Santa Maria Gorete, localizada em Salvador. Mas em minha família também tenho um irmão que é casado com uma mulher sensacional que pertence a uma igreja evangélica. Também tenho parentes que são budistas. A minha família é a cara do Brasil. Temos uma capacidade de nos amarmos, ainda que tenhamos posições diferentes. Acima de tudo a gente aprendeu que precisamos nos amar, que precisamos lutar para mudar o mundo.

IHU On-Line – A mulher, assim como sua mãe, tem um papel de destaque nas religiões afro...

Clóvis Cabral – Na África, em algumas regiões, as mulheres tinham um peso político e religioso muito grande. Por exemplo, a famosa sociedade secreta das Ialodês teve um papel fundamental. Existe um conjunto de povos que foi constituído a partir da liderança de mulheres. Mas a África também tinha povos onde o homem era o mais importante representante. Não é correto dizer que só havia uma ou outra expressão. De fato, a primeira organização religiosa em Salvador, que é o candomblé, surgiu da liderança de mulheres. Se hoje o movimento negro ressurge forte, se temos instituições e as comunidades negras impõem a pauta em torno das questões afro afirmativas, isso só foi possível porque as mulheres negras exerceram um papel fundamental. Chamo isso de "divino feminino". É a revelação de Deus a partir do feminino.

IHU On-Line – Como hoje, 118 anos depois do fim da escravidão, podemos observar a inserção cultural e social da comunidade negra no Brasil?

Clóvis Cabral – O movimento negro renasceu de maneira mais consistente e forte a partir de 1978. No entanto, é evidente que antes disso já havia uma fermentação muito forte nas comunidades negras. Há 35 anos invocamos o dia 30 de novembro como o Dia da Consciência Negra, criticando o dia 13 de maio como o Dia da Abolição. Nós chamamos essa data de “Dia da Bulição”, pois buliram, mas não aboliram a escravidão. Com o Dia da Consciência Negra, surgiu uma idéia genial que foi retirar Zumbidos porões da humanidade e alçá-lo a essa categoria de herói nacional. Ele foi construído não pelos escribas do sistema ou pelos bajuladores da história. Zumbi é diferente de um Tiradentes, de um Marechal Floriano. Ele foi um herói construído pelo povo. Hoje o movimento negro é um ator na cena política contemporânea. Não podemos falar em transformação do País sem levar em consideração as negras e os negros organizados. Nós colocamos na pauta da política nacional a questão racial, o combate ao racismo.

IHU On-Line – A Pastoral Afro afirma que o racismo e a discriminação racial não são apenas maus hábitos, mas que violam direitos e geram inúmeras conseqüências. Podes falar um pouco sobre essas conseqüências?

Clóvis Cabral – Ao longo desses anos, temos dito que não basta considerar o racismo algo que só acontece no âmbito familiar e pessoal. Uma coisa é você não querer que sua filha namore com uma pessoa negra. Outra é você exercer um cargo público e não respeitar todas as pessoas, fazendo diferença e selecionando pessoas a partir de critérios raciais. Não se pode discutir a questão racial apenas no âmbito privado, que já é uma boa discussão. Mas quando você tem o poder de decidir e o que você decide atinge muitas pessoas, essa decisão não pode ser a partir de critérios racistas, porque aí você oprime, torna as pessoas reféns.

Na Pastoral Afro Brasileira, mostramos que as pessoas têm que mudar de vida, que o Evangelho é anúncio da boa nova para todos, nos chama à conversão, a repensar os valores, a rever as posições que temos. Mas, por outro lado, temos que garantir também o apoio a toda luta na produção de direitos e no combate ao racismo, usando os instrumentos legais que temos. Nossa questão não é somente pensar numa Teologia Afro Brasileira da Libertação. Queremos contribuir com o movimento negro, para construímos esse mundo possível que sonhamos tanto. Nem sempre as pessoas entendem isso.

IHU On-Line – Como a Pastoral tem contribuído para que a igreja possa conviver e dialogar com as religiões afro?

Clóvis Cabral – Esse é um grande desafio porque, infelizmente, o racismo marca profundamente a sociedade brasileira e a Igreja não é isenta disso. Há mais de 400 bispos no Brasil e só cinco são negros. De quase 19 mil sacerdotes talvez sejamos dois mil negros. Ainda há congregações e centros de formação para a vida religiosa e para o clero brasileiro que suspeitam da capacidade do jovem negro ser um bom sacerdote ou de assumir compromissos. Há pessoas que suspeitam da capacidade de um jovem negro se manter fiel na vida religiosa. Isso é terrível, porque o racismo está impregnado na nossa cultura, no modo como vemos o mundo. Não podemos sair por aí dando lições para as pessoas, mas queremos começar por nossa própria casa. Se a gente pode dialogar com judeus, protestantes, evangélicos, porque não podemos fazer isso com religiões de matrizes africanas? Nós, negros, também professamos a fé em Jesus Cristo. A primeira coisa que a Pastoral diz é que todas as religiões devem ser respeitadas e a primeira coisa que a igreja deve fazer é ter um outro olhar sobre essas religiões, conhecê-las, ultrapassar todos os preconceitos.

IHU On-Line – Como o senhor vê o conflito entre evangélicos e adeptos do candomblé?

Clóvis Cabral – O conflito me parece parte notadamente das igrejas neopentecostais, que tem sua expressão maior na Igreja Universal do Reino de Deus, na Igreja Internacional da Graça de Deus, que eu pessoalmente penso: são igrejas mesmo? Estão ligadas a que tradição cristã? Diferente da Igreja Luterana, onde encontramos o Ministério de Combate ao Racismo, semelhante à Pastoral Afro-Brasileira. Porém,também na Igreja católica, você também tem movimentos reacionários, que repetem esse discurso de satanismo das religiões de matrizes africanas, como nas igrejas neopentecostais. Eles não vêem legitimidade no diálogo, na conversa inter-religiosa. As igrejas neopentecostais têm programas que ficam horas desrespeitando as simbologias das religiões afro e os cantos sagrados. Isso é inconstitucional. Porém, as igrejas de raízes africanas têm pouco poder político nesse sentido. As igrejas pentecostais possuem bancadas dentro do Congresso que as defendem. Talvez por isso seja visível o desrespeito constitucional. É a velha luta do grande contra o pequeno.

IHU On-Line – O candomblé tem assumido uma grande força religiosa no Brasil, com presença significativa até nos Estados que têm tradição cristã, nestas últimas décadas. Sendo uma religião universal, como o candomblé está presente na América Latina?

Clóvis Cabral – Desconhecemos a realidade da diáspora afro latino-americana. A gente acha que só há negros no Brasil. Mas aArgentina possui uma comunidade afro - argentina. O que é o tango? A própria palavra tango, é banto, é africano. O tango, que nasceu na zona portuária de Buenos Aires, é a expressão cultural, musical e de expressão corporal de influência africana. NoParaguai, há uma comunidade grande de afro-paraguaios, que estão começando a reivindicar seus direitos. No Chile, que todo mundo vê como um país indígena, há uma comunidade afro-chilena, e no norte há uma população negra imensa, que cultiva azeitonas. No Peru, ao lado das culturas indígenas, você encontra os afro-peruanos. Há 15 dias realizamos na Venezuela o 10º encontro de Pastoral Afro Latino-Americana e Caribenha, que reúne os negros católicos em diálogo com as religiões de matrizes africanas de toda América Latina e Caribe. Esse é um mundo amplo que a gente desconhece. Pensamos que só veio negro para o Brasil, mas você pode percorrer a América Latina toda e encontrará essas recriações das matrizes africanas em cada território a partir do contexto regional.Sem contar nossa relação com os Estados Unidos, que têm também uma Conferência dos Negros Católicos Norte-Americanos. Eles têm vindo participar de nossos encontros e nós temos participado de movimentos produzidos por eles.

IHU On-Line – O sociólogo Reginaldo Prandi afirmou que as religiões afro-descendentes sobrevivem à sombra do catolicismo. Como o senhor vê isso?

Clóvis Cabral – Creio que essa frase dele pode ser interpretada numa perspectiva que encolhe o fenômeno do relacionamento da Igreja Católica ou a religião cristã. Evidente que “à sombra” não significa sem vida ou dependente, mas há verdade nessa afirmação. O catolicismo que existe no Brasil é muito diferente do catolicismo praticado na Europa, isso porque o catolicismo brasileiro foi afetado pelas religiões de matrizes africanas. Ou seja, o oprimido transforma a cultura e a opressão do seu opressor, dando a ela uma nova perspectiva. E foi o que o povo negro fez com a herança da fé cristã que recebeu.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

''A Teologia da Libertação pode ajudar a interpretar o mal-estar global de hoje''. Entrevista especial com Sergio Torres


“Tanto a teologia da libertação, por si mesma, como o próximoCongresso Continental de Teologia de 2012 podem contribuir muito para abordar de uma maneira nova esses novos desafios”, que “não foram considerados no Concílio, mas temos as ferramentas que tornam possível enfrentá-los”.

Para o teólogo chileno Sergio Torres, o salto qualitativo promovido pela teologia da libertação foi abrir a perspectiva contextual na teologia. “O contexto – afirma – permite aprofundar alguns aspectos da única Mensagem e torná-la mais credível para pessoas de diferentes culturas”. E também agregando outro “lugar teológico”: a presença de Deus na “fé que atua pela caridade”, especialmente entre os pobres.

Torres é cofundador e membro emérito do comitê coordenador daAmeríndia (www.amerindiaenlared.org), rede de católicos/as do continente americano que, junto a outras organizações como oInstituto Humanitas Unisinos – IHU, está organizando e irá promover o Congresso Continental de Teologia, entre os dias 8 e 11 de outubro de 2012, na Unisinos, por ocasião dos 50 anos de convocação do Concílio Vaticano II e dos 40 anos da publicação do livro Teologia da libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutiérrez.

Por isso, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line,Torres conta os principais momentos da história da Ameríndia e afirma que celebrar essas datas significativas em solo latino-americano é também rememorar os momentos de “grande entusiasmo” vividos pela Igreja continental, que “não só leu e aplicou o Concílio, mas também o reinterpretou a partir da nossa realidade social, econômica e cultural”.

Sergio Torres é licenciado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile. Foi professor de teologia dogmática no Instituto Alfonsiano de Santiago. É coeditor de vários livros da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (Asett/Eatwot) e cofundador e membro emérito do comitê coordenador da Ameríndia. Foi vigário-geral da diocese de Talca e atualmente é vigário-cooperador de uma paróquia de Santiago.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Congresso Continental de Teologia de 2012 tem sua origem a partir da proposta da Ameríndia junto de outras organizações teológicas do continente. Resgatando sua história, como nasceu a Ameríndia?

Sergio Torres – A Ameríndia nasceu em 1978, por ocasião da preparação da Assembleia Episcopal de Puebla. Nesse momento, vivia-se uma situação conflitiva dentro da tradição libertadora iniciada na Conferência de Medellín, de 1968. Depois de Medellín, a grande maioria da Igreja latino-americana aceitou com alegria e tentou implementar as orientações e os documentos dessa conferência. Em todo o continente, iniciou-se uma nova etapa da história da Igreja, que realizou uma profunda autocrítica de sua ação pastoral e começou um novo estilo em sua missão frente à sociedade. Ela se separou das classes dominantes e adquiriu uma cidadania eclesial entre os pobres. No entanto, houve uma pequena minoria que não participou dessa interpretação geral e realizou uma crítica social e teológica de algumas grandes orientações de Medellín, por exemplo, da opção pelos pobres.

Essa minoria adquiriu maior poder e visibilidade quando o bispo colombiano Alfonso López Trujillo foi eleito secretário-geral doCelam [Conselho Episcopal Latino-Americano] em 1972, na cidade de Sucre, Bolívia. Uma das tarefas que esse bispo se propôs foi desmantelar algumas instituições criadas depois deMedellín e mudar os integrantes da Comissão Teológica do Celam. Quando chegou o momento da preparação daConferência de Puebla, o Celam interpretou a tarefa e a missão da Igreja com uma nova perspectiva. Em alguns documentos preparatórios, disse-se que o maior desafio para a missão da Igreja na América Latina não era a evangelização dos pobres, mas sim a evangelização da cultura. Essa perspectiva, que em si mesma era oportuna, tinha a intenção implícita de mudar a interpretação de Medellín. Como se comprovou posteriormente, durante a Conferência de Puebla, essas duas perspectivas estiveram presentes e lutaram para prevalecer, impondo-se à reafirmação de Medellín como a opção fundamental de Puebla, dentro da perspectiva geral de “comunhão e participação”.

Quando chegou o momento de nomear os teólogos especialistas que deveriam acompanhar os bispos na Conferência de Puebla, a Secretaria do Celam descartou quase totalmente os teólogos identificados com Medellín e com a teologia da libertação. Essa discriminação produziu uma grande confusão e oposição entre os bispos já designados para participar da conferência, e muitos deles haviam pedido para contar com a assessoria desses especialistas que haviam desempenhado um papel muito importante em Medellín.

Nesse momento nasceu a Ameríndia, embora sem esse nome. Ela se organizou como uma resposta à inquietação e aos pedidos dos bispos de acompanhamento e assessoria em Puebla. Os próprios teólogos da libertação encontraram uma maneira de constituir um grupo de trabalho, viajar para Puebla e encontrar um espaço físico, perto do Seminário Palafox, onde se realizava a conferência. Todos os dias, bispos, religiosos e outras pessoas iam até esse lugar para trabalhar com o grupo de teólogos “extramuros”. A história posterior demonstrou que essa assessoria, requerida legitimamente, foi positiva e fecunda nos resultados, inseridos no Documento Final.

IHU On-Line – Em sua história, quais foram os momentos mais importantes da Ameríndia?

Sergio Torres – Essa iniciativa, contada depois de 33 anos, parece simples e sem conflitos. Na prática, não foi assim. A secretaria doCelam e muitos bispos sentiram que a presença desses teólogos emPuebla era um ato não autorizado pela Igreja institucional desse momento e constituía uma ação quase subversiva. No entanto, os bispos que solicitaram essa assessoria consideraram que tal convite era um exercício normal da sua autoridade e liberdade como bispos e sucessores dos apóstolos.

Esse primeiro esforço organizativo de um grupo de teólogos para assessorar bispos em conferências oficiais é o primeiro antecedente histórico que, no entanto, ainda não recebeu o nome de Ameríndiaenquanto tal. Esse nome nasceu por ocasião de um esforço semelhante por motivo da preparação da quarta Conferência do Episcopado Latino-Americano em Santo Domingo, em 1992. Nessa oportunidade, novamente os teólogos da libertação foram excluídos, e, pela segunda vez, um grupo de bispos solicitou a assessoria teológica para suas deliberações, o que efetivamente ocorreu.

Depois da Conferência de Santo Domingo, em 1992, o grupo de teólogos/as adquiriu uma percepção subjetiva de integrar um coletivo vinculado pela amizade e pela afinidade teológica que estava preparado para cumprir tarefas inéditas até esse momento. Eles ainda não tinham consciência de constituir um grupo com identidade própria. Em 1997, apresentou-se outra oportunidade de cumprir uma função parecida. Por ocasião da preparação do Jubileu do Ano 2000, João Paulo II convocou em Roma sínodos continentais para impulsionar uma melhor celebração do Jubileu em cada continente. Em 1997, realizou-se em Roma o Sínodo da América, que incluiu bispos e outros representantes da América do Norte, América Latina e Caribe. Pela terceira vez, um grupo de teólogos e teólogas, muitos deles os mesmos, viajaram para Roma, buscaram um lugar de trabalho e puderam responder ao convite dos bispos que solicitavam assessoria.

Depois desse sínodo em Roma, ocorreu uma mudança importante no grupo da Ameríndia, que até então era formado exclusivamente por teólogos/as. A mudança consistiu em ampliar o grupo incluindo leigos, religiosas e sacerdotes como parte integrante de um coletivo mais amplo e multidisciplinar. Ampliou-se o objetivo. O grupo já não tinha como única missão estar preparado para uma eventual assessoria, mas adquiriu um objetivo permanente e mais amplo. Propôs-se “manter e atualizar a tradição teológica, social e pastoral de Medellín e Puebla como expressão concreta do seguimento de Jesus na realidade atual do continente, marcada pelo predomínio do capitalismo neoliberal e pela vigência de democracias restritas”.

Posteriormente, o grupo viu a necessidade de se dar uma maior organização e estabeleceu uma secretaria permanente na cidade deMontevidéu, Uruguai, e contratou funcionários para impulsionar o trabalho que ia crescendo progressivamente. Nos anos seguintes, a Ameríndia assumiu uma tarefa extra de organizar congressos teológicos e publicar livros sobre teologia latino-americana adaptada aos novos desafios. Também estabeleceu um contato muito próximo com a nova iniciativa do Fórum Social Mundial que luta por “outro mundo possível”. A partir dessa vinculação e em conjunto com outras instituições, constituiu-se uma iniciativa intituladaFórum Mundial de Teologia e Libertação.

Finalmente, a última iniciativa importante foi a participação na preparação e na realização da Conferência Episcopal de Aparecida, Brasil, em 2007. No momento da preparação, aAmeríndia participou de um diálogo de teólogos da libertação com alguns bispos designados pelo Celam para refletir sobre a situação e o momento atual da teologia da libertação. Além disso, a Ameríndia participou da Conferência Episcopal de Aparecida de uma forma diferente do que as anteriores. Desta vez, a presidência do Celam deu a conhecer, de forma oficial, que, na cidade de Aparecida, havia um grupo de teólogos relacionados com a Ameríndia que estava disponível para a assessoria teológica e que os participantes da Conferência tinham plena liberdade para consultá-los.

IHU On-Line – Em seu site, a Ameríndia afirma ser uma “rede de católicos com espírito ecumênico e aberta ao diálogo e à cooperação inter-religiosa”. Como o senhor vê o papel dos teólogos/as nos debates com as outras Igrejas cristãs e as demais religiões que marcam a cultura latino-americana?

Sergio Torres – Nos primeiros anos da história da Ameríndia, houve um debate mais ou menos prolongado sobre a necessidade de trabalhar em conjunto com as Igrejas protestantes. Muitos integrantes diziam que essa deveria ser a atitude normal da nossa instituição. Viver antecipadamente a única Igreja de Jesus Cristocentrada em sua Mensagem libertadora e no de serviço aos mais pobres. O debate se encerrou, e a Ameríndia acreditou ser melhor se definir como uma organização católica, aberta às outras Igrejas pensando que há muitos problemas e desafios próprios que é necessário tratar em família. O mesmo acontece com as Igrejas protestantes. Cada uma tem suas próprias organizações, assembleias, revistas, para melhor definir sua identidade e, além disso, muitas dessas Igrejas mostram pouca preocupação ecumênica. A Ameríndia não é um grupo fechado e sempre cultivou muito boas relações com as correntes libertadoras do protestantismo. Alguns teólogos protestantes, como Rubem Alves,José Míguez Bonino, Elsa Tamez e Julio de Santa Ana, entre outros, fizeram contribuições muito importantes para a teologia da libertação. Temos alguns elementos comuns em nossa curta história e tradição.

A Ameríndia não entrou no debate sobre temas doutrinários e dogmáticos com as outras tradições protestantes. Ela prefere viver o ecumenismo na vida social e prática do serviço aos pobres e da libertação do povo. E ao mesmo tempo ela é devedora das ricas tradições e da sabedoria dos povos indígenas e afro-americanos. Ela aprendeu com o desenvolvimento das teologias que emergiram a partir dessas tradições ancestrais. Com relação ao diálogo com as outras religiões, ela se manteve à margem dos profundos debates que ocorrem entre grupos interessantes de teólogos e estudiosos dessas religiões.

Devido à pouca presença entre nós das religiões da Ásia, como o hinduísmo e o budismo, ela está atenta a esses debates, mas não participou diretamente. Ao mesmo tempo, valoriza os âmbitos especializados de diálogo inter-religioso, por exemplo os estudos realizados pela Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo. Naturalmente, nos preocupa muito a necessidade de uma profunda reformulação da Mensagem de Jesus Cristotransmitida até agora com as categorias da cultura grega e ocidental. Essa tarefa é prioritária e urgente.

IHU On-Line – A identidade da Ameríndia também é marcada pela reafirmação da “opção por novos modelos de igreja comunitária e participativa e pela teologia da libertação como uma contribuição para a Igreja universal”. Em sua opinião, quais são as características centrais desses novos modelos de Igreja?

Sergio Torres – A história da Igreja na América Latina depois do Concílio Vaticano II está marcada por períodos de profunda renovação e vitalidade e por momentos dificuldades, recolhimento e frustração. No momento do Concílio Vaticano II havia na América Latina um grupo muito valioso de bispos comprometidos espalhados por todo o continente. Alguns nomes são lembrados para sempre, por exemplo: D. Hélder Câmara, do Brasil, e D. ManuelLarraín, do Chile. O teólogo José Comblin, recentemente falecido, propôs a chamar esses bispos de “pais da Igreja latino-americana”. Esses bispos, com a ajuda de teólogos e agentes pastorais de base, contribuíram para ler o Concílio a partir da perspectiva da América Latina na Conferência de Medellín, em 1968.

A partir de então e durante quase 20 anos, a Igreja do subcontinente experimentou um grande crescimento e vitalidade no povo, adquirindo uma nova identidade. Seguindo Jesus Cristo e com uma profunda fidelidade à tradição eclesial, ela assumiu um novo papel junto aos pobres, deixando de lado a sua posição anterior de legitimar as classes dominantes da sociedade. Junto com isso houve uma profunda renovação da liturgia, da catequese, da teologia, da organização eclesial e da evangelização em seu conjunto, levando em conta as orientações de Medellín e daEvangelii Nuntiandi e, posteriormente, da Conferência de Puebla.

Lamentavelmente, a partir da década de 1980, aconteceu algo inesperado nessa renovada Igreja latino-americana. Produziu-se uma divisão em seu interior entre alguns setores da hierarquia e alguns teólogos com relação à interpretação de Medellín e dePuebla, em particular, quanto à maneira de entender a opção pelos pobres. Algumas pessoas acreditaram que a opção pelos pobres poderia ser interpretada como uma expressão marxista. Essa discussão interna levou alguns setores da Cúria Vaticana a tomar partido e, a partir desse momento, produziu-se um grande distanciamento e desconfiança entre essas instâncias romanas e os setores progressistas do continente.

Um momento importante dessa história foram as duas instruções daCongregação para a Doutrina da Fé, de 1984 e 1986, condenando algumas formas da teologia da libertação. Apesar de as instruções dizerem que se tratava de “algumas formas”, os setores mais conservadores consideraram que toda a teologia da libertação estava submetida a suspeitas e, finalmente, condenada. Esse mal-entendido tem estado presente até agora e criou as distâncias e diferenças de opinião e de atitude que impediram uma resposta comum da Igreja aos novos desafios dos tempos presentes. Uma dificuldade séria foi escutar quase exclusivamente a instrução de 1984 e o silenciamento que não permitiu acolher com o mesmo interesse a carta de João Paulo II aos bispos do Brasil, de maio de 1986, em que, depois da primeira instrução, dizia-lhes claramente que “nós e vocês consideramos que a teologia da libertação é útil e necessária”.

IHU On-Line – Em 2012, comemoraremos o 50º aniversário da convocação do Concílio Vaticano II, aniversário que também inspira a promoção do Congresso Continental de Teologia. Como essa data pode iluminar a Igreja no contexto atual?

Sergio Torres – A Igreja da América Latina e do Caribeacolheu com grande entusiasmo o Concílio. Inclusive, estava preparada para fazê-lo. Mais ainda, não só leu e aplicou o Concílio, mas também o reinterpretou a partir da nossa realidade social, econômica e cultural. O conceito de Igreja como Povo de Deus foi acolhido com grande naturalidade, pois, nessa época, estava se desenvolvendo a consciência do povo como um ator importante que assumia o seu papel protagônico e propunha grandes mudanças na estrutura da sociedade. A cultura latino-americana, solidária e fraterna, viveu com alegria e entusiasmo a identidade de uma Igreja comunitária, em que bispos e fiéis, na linguagem da época, se sentiam parte de um projeto comum e horizontal de Igreja missionária e renovada.

A história também mostra que, tanto na Europa quanto naAmérica, depois dos primeiros anos de entusiasmo pelo Concílio, surgiram diversas interpretações sobre o verdadeiro significado de seus documentos com as orientações e conclusões pastorais. NaAmérica Latina, também houve um processo de involução e de restauração. Alguns setores consideraram que o Concílio, em alguns aspectos, havia ido longe demais e que era necessário retomar uma linha mais tradicional em vários níveis.

O 50º aniversário do início do Vaticano II é um momento muito oportuno para reler o Concílio. Os grandes documentos, especialmente a Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, têm intuições permanentes que são muito pertinentes para a situação atual. O espírito democrático e o desejo de participação exigem uma Igreja comunitária, participativa e solidária. A abertura ao mundo hoje em dia adquire novos aspectos e enfrenta grandes desafios. Há problemas novos que não foram considerados no Concílio, mas temos as ferramentas que tornam possível enfrentá-los. Tanto a teologia da libertação, por si mesma, como o próximo Congresso de 2012 podem contribuir muito para abordar de uma maneira nova esses novos desafios.

IHU On-Line – Em 2012, também comemoramos os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez. A partir dessa obra inaugural, quais foram e são as principais contribuições da teologia da libertação no contexto da América Latina? Qual é o significado da “libertação” hoje?

Sergio Torres – O surgimento da teologia da libertação significou um momento importante na história da teologia em geral. Antes disso, considerava-se que havia apenas uma única teologia universal, de acordo com o que diz São Paulo: “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo”. Sem negar de forma alguma esse princípio fundamental, a teologia da libertação abriu a perspectiva contextual. Cremos em um só Senhor, mas fazemos isso a partir dos nossos contextos e das nossas situações sociais e culturais próprias e diferentes. O contexto permite aprofundar alguns aspectos da única mensagem e torná-la mais credível para pessoas de diferentes culturas. Nascida na América Latina, a teologia da libertação se estendeu para a África e Ásia e, além disso, existem experiências de teologia contextual na América do Norte e Europa.

A teologia libertadora contribuiu com outros elementos para a reflexão teológica tradicional. A teologia refletia sobre o mistério de Deus descobrindo-o nos “lugares teológicos” permanentes como aBíblia, a Tradição, a Liturgia, o Magistério, o ensinamento dos teólogos etc. A teologia da libertação agregou outro “lugar teológico”: descobrir a presença de Deus na “fé que atua pela caridade”, especialmente entre os pobres que, iluminados pela sua fé e pelo seguimento de Jesus, lutam pela sua libertação.

O conceito de libertação ampliou-se e enriqueceu-se. Em um primeiro momento, falou-se da libertação dos pobres entendidos como os operários das indústrias e das fábricas das grandes cidades do continente. Posteriormente, o conceito de pobre também foi se aprofundando. Os pobres são os excluídos, os marginalizados, os que não têm voz, os que são discriminados ou, como se diz hoje, “o outro”. Atualmente, o conceito de liberação expressa a salvação e a libertação que Jesus nos traz com muitos termos que se referem à salvação de setores postergados e oprimidos, na atual situação cultural e social.

Hoje em dia, não existe uma única teologia da libertação. Há um pluralismo teológico, aberto, mas fiel a algumas intuições e princípios básicos da primeira teologia da libertação. Essa teologia ainda tem muito a dar de si mesma. Por exemplo, deve continuar articulando a contribuição própria e complementar dos teólogos acadêmicos e dos teólogos de base. Além disso, também se pede que os profissionais não falem somente para os pobres, mas a partir e com os pobres.

IHU On-Line – Em um momento histórico de maior democracia e desenvolvimento na América Latina, como o senhor vê a Igreja regional?

Sergio Torres – A história econômica, social e política tem sido marcada por grandes etapas que incluem os processos de desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960, as ditaduras dos anos 1970 e 1980 e a recuperação da democracia no novo contexto da globalização neoliberal. A Igreja hierárquica e a Igreja de base têm estado presentes de formas diferentes nesses processos históricos. Atualmente, dá a impressão de que não temos respostas muito definidas frente aos novos desafios. O que aprendemos com as etapas anteriores não é suficiente para atuar no momento presente. Há desafios novos como os que provêm do crescimento da população mundial, das mudanças climáticas globais e do esgotamento dos recursos naturais que ameaçam a própria sobrevivência da vida no planeta.

A teologia da libertação e a ação social da Igreja se baseiam no protagonismo do povo e em uma teoria social crítica que permita interpretar as causas da pobreza e propor estratégias viáveis de desenvolvimento e de libertação. Ambas as coisas hoje em dia são insuficientes. A mobilização popular é fraca e inorgânica, e não há uma teoria social comum que permita enfrentar o neoliberalismo.

No entanto, há um elemento positivo. A teologia da libertação está mais bem preparada do que outras instituições e ideologias para interpretar o que está acontecendo atualmente com o mal-estar global e os protestos dos “indignados”. Esse mal-estar se deve à crise de um paradigma de civilização e exige um novo modelo de sociedade com participação cidadã, regulação e controle da economia financeira. Além disso, seria preciso chegar a ter novos modelos e critérios de governança mundial. Para isso seria necessária uma reforma da organização interna das Nações Unidas.

O Fórum Social Mundial, em suas diversas versões, proporcionou novas ferramentas para animar os movimentos sociais e criar um novo estilo de fazer política. Mas essas inspirações não foram suficientes para criar uma força transformadora e renovadora. Por enquanto, nós, cristãos, estamos chamados a viver o Evangelho em pequenas comunidades e a participar dos movimentos sociais atuais e de outras iniciativas que permitam progressivamente ir abordando os problemas mais globais, tais como as redes sociais da internet.

IHU On-Line – Especificamente com relação à Igreja chilena, recentemente houve o caso do Pe. Fernando Karadima, condenado pelo Vaticano por abusos sexuais de menores. Quais estão sendo os desdobramentos e as consequências desse caso no Chile?

Sergio Torres – O caso desse sacerdote teve uma profunda repercussão em toda a Igreja chilena, porque ele estava relacionado com um amplo grupo de sacerdotes diocesanos, que inclui cinco bispos. Além disso, pessoalmente ele tinha fortes vínculos com leigos de grande influência na vida social e política do país, por seu poder econômico. Tal era a credibilidade desse sacerdote que a hierarquia demorou em dar início à investigação, o que trouxe um maior prejuízo para a Igreja. Felizmente, depois de um vacilo inicial, o caso foi acolhido e investigado.

As consequências foram muito negativas para a credibilidade da Igreja, mas, ao mesmo tempo, há aspectos positivos que é preciso destacar. A opinião pública estava cansada de uma atitude autoritária frente aos problemas éticos relacionados com a sexualidade. Esse caso demonstrou que, na vida de alguns sacerdotes, também ocorriam situações muito condenáveis. Assinalou-se que uma das causas do escândalo legítimo que se produziu vem da falta de transparência e do ocultamento de casos específicos por parte da própria hierarquia. Reconheceu-se com razão que, nos casos de pedofilia, não está incluído somente o problema da sexualidade e dos abusos, mas também, e talvez principalmente, o problema do mau uso da autoridade. Pôs-se em dúvida, e com razão, que a ordenação sacerdotal outorga aos sacerdotes uma autoridade excessiva e sem limites. É hora de atualizar o que o Vaticano II disse, de que a autoridade é um serviço e que na Igreja não deve acontecer, como disse Jesus, o que acontece com as autoridades do mundo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Rabinos europeus pedem ao Vaticano que suspenda o diálogo com os lefebvrianos

Rabinos europeus e sobreviventes do Holocausto no Estados Unidos pediram ontem ao Vaticano que suspenda o diálogo de unidade com os católicos ultra tradicionalistas até que o seu movimento se comprometa renunciar aos membro anti-semitas em suas fileiras.

A reportagem é do sítio Religión Digital, 20-10-2011. A tradução é do Cepat.

A Conferência de Rabinos Europeus disse que o bispo Richard Williamson (foto), que se fez famoso por negar publicamente o Holocausto, e o chefe do grupo dissidente na França recentemente avivaram a velha acusação de que os judeus mataram Jesus. A Associação Estadunidense de Sobreviventes do Holocausto e seus Descendentes destacou que Williamson repetiu a ideia de culpa coletiva contra os judeus pela morte de Jesus, apesar da recente reafirmação do Papa Bento XVI de que a Igreja rejeita essa acusação.

“Pedimos à Igreja Católica que suspenda as negociações com as tendências católicas extremistas até que fique claro que estes grupos demonstrem um compromisso na luta contra o anti-semitismo em suas filas”, disse o rabino Pinchas Goldschmidt (foto), cujo grupo representa os rabinos chefes e os juízes máximos da Europa. “A Igreja Católica deve deixar claro que os que se dedicam ao ódio não têm lugar em suas filas”, argumentouElan Steinberg, do grupo de sobrevivientes do Holocausto. Os grupos judeus reagiram depois de que Williamsonrepetiu sua acusação contra os judeus em seu blog no final de semana.

O reverendo Regis de Cacqueray, chefe do cônego francês da rebelde Sociedade de São Pio X (SSPX), disse o mesmo num artigo no mês passado. Os dois criticam abertamente qualquer compromisso entre a SSPX e o Vaticano que mantém negociações para reincorporar a sociedade na Igreja após sua separação faz 23 anos pela recusa em aceitar as reformas modernizadoras introduzidas na década de 1960.

Ambos mencionaram o sensível tema das relações com os judeus enquanto o Papa Bento se prepara para receber um encontro de líderes religiosos mundiais – que incluem judeus – na próxima semana em Assis. A igreja Católica Romana disse que o Concílio Vaticano II (1962-1965) não considera os judeus responsáveis pela morte de Jesus, dando início a uma era de melhores relações entre católicos e judeus.

Temas, porém, relacionados ao Holocausto, como a negativa de Williamson e o apoio de Bento XVI a beatificação do Papa Pío XII, em tempos de guerra, em que documentos de alguns historiadores e líderes judeus afirmam que o papa a época não fez o suficiente para apoiar os judeus perseguidos, ainda causam mal estar.

Depois de dois anos de discussões com o SSPX, o Vaticano disse no mês passado que o movimento deve aceitar uma lista de ensinamentos fundamentais da Igreja para que seus quatro bispos sejam reintegrados. Os quatro, entre elesWilliamson, foram excomungados em 1988, quando foram ordenados pelo fundador da sociedade SSPX, o arcebispoMarcel Lefebvre contra as ordens da Santa Sé.

Aguarda-se que a SSPX responderá a demanda do Vaticano nos próximos meses

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Bispo de Honduras irá concorrer às eleições porque a política ''oprimiu o pobre''

O "Bispo Vermelho" deHonduras diz que irá concorrer à presidência do país centro-americano se obtiver a permissão do Papa Bento XVI.

A reportagem é de Paul Jeffrey, publicada no sítio Catholic News Service, 11-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Dom Luis Santos Villeda, deSanta Rosa de Copan, vai celebrar seu 75º aniversário em novembro e planeja submeter imediatamente a sua renúncia ao Vaticano, como exigido pelo direito canônico. Uma vez que sua renúncia seja aceita e ele estiver liberado das responsabilidades de bispo, Dom Santos afirma que irá concorrer para presidente como candidato de uma facção progressista do Partido Liberal, cujo último presidente,Manuel Zelaya, foi deposto em um golpe de 2009.

"Eu não aspiro a ser presidente de Honduras. Não é essa a minha ideia", disse Dom Santos ao Catholic NewsService.

Ele disse que foi convidado pela primeira vez pelos líderes do Partido Liberal para se candidatar nos anos 1990 e novamente em 2009, mas nas duas vezes ele recusou.

"Mas agora que eu estou me aposentando como bispo, espero falar com o papa e obter a sua permissão. Eu já não seria mais bispo nem teria qualquer ofício eclesial, mas continuaria sendo sacerdote. Eu poderia celebrar a missa de forma privada na manhã, antes de ir ao gabinete presidencial às 8h", disse Santos.

Dom Santos tem sido um antigo apoiador público doPartido Liberal, cuja bandeira vermelha contribuiu para o seu apelido. Ele também foi um ardente adversário do golpe de 2009, posição que o colocou em desacordo com o cardeal de Tegucigalpa, Óscar Rodríguez Maradiaga, que apoiou o golpe.

Analistas dizem que o apoio do cardeal para o golpe custou-lhe capital político. O cardeal é visto muito menos frequentemente em público nestes dias. Dom Santos, por outro lado, continua muito visível, apesar de sua remota diocese no oeste do país, que inclui algumas das comunidades mais pobres da América Central. Ele tem sido um entusiasta apoiador da Resistência, a estreita coalizão de grupos civis que se opõem ao governo desde o golpe.

No entanto, nem todo mundo ficaria satisfeito com uma candidatura de Dom Santos.

"A decisão do bispo de se envolver na política depois de deixar o cargo como bispo prejudica, sim, a Igreja e prejudica a política", disse o padre jesuíta Ismael Moreno, diretor da Rádio Progreso, uma estação estreitamente identificada com a esquerda hondurenha.

"A política aqui é histórica e intimamente ligada ao clericalismo. Assim, quando um bispo ou um padre decide participar da política partidária, isso não nos ajudar a nos movermos em direção a uma cultura política da cidadania", disse o Pe. Moreno.

"E isso iria prejudicar a Igreja, porque ele não é um bispo da unidade; ao contrário, ele tem promovido o confronto. Por isso, dividiria os católicos ainda mais do que agora, e não em nome da luta pelos pobres, mas sim em nome da política partidária. Isso prejudicaria aquelas pessoas na Igreja que estão lutando para servir a comunidade sem estarem interessado em alcançar cotas de poder. Faria com que muitos de nós pareçamos que estamos participando de movimentos sociais porque estamos interessados no poder pessoal", disse o Pe. Moreno.

Thelma Mejía, jornalista independente e analista político de Tegucigalpa, vê poucas chances sobre a possibilidade de Santos ser eleito presidente.

"Embora ele tenha apoio dentro de uma facção do Partido Liberal, ele não é muito elegível dada a sua natureza polêmica e a sua permanente postura de confronto. Os hondurenhos, em geral, não gostam do confronto frontal, e, desde o golpe, estamos ainda mais cansados do confronto", disse ela.

Mejía disse que a as pesquisas mostram que mais de 50% dos hondurenhos se identificam como centristas, independentes dos partidos Liberal e Nacional, que têm dominado a política do país há um século.

"Precisamos de um líder político que apele a esse centro, a fim de realizar a mudança que é necessária. E ainda não apareceu ninguém da Resistência, nem da tradição bipartidária, que possa fazer isso", afirmou.

Dom Santos rejeita a noção de que os líderes da Igreja devem permanecer fora da política partidária.

"É muito conveniente para os ricos que a Igreja permaneça fora da política, porque, dessa forma, eles podem maltratar e roubar dos pobres sem que a Igreja proteste. Eles ficam felizes porque nenhum padre vai reclamar. E, se o fizer, eles o rotulam como comunista", disse Dom Santos.

"Por que eu me envolvo na política? Porque foi a política que oprimiu o pobre", disse o bispo.

Ele disse que muitos bispos católicos de Honduras ficaram quietos sobre assuntos políticos porque são estrangeiros.

"Se eles intervierem na política interna de Honduras, eles poderiam perder a sua residência, por isso, no fim das contas, eles ficam quietos. Mas é a política que torna as pessoas pobres, que deixa a clínicas e hospitais sem medicamentos, que rouba o dinheiro dos vilarejos. É a política que suporta a corrupção desenfreada de Honduras. Como bispo, eu não posso me desinteressar pela saúde e pela educação das crianças, os últimos dos meus irmãos e irmãs", disse Dom Santos.

"Este é um país rico, com terras produtivas. Mas há muita injustiça", desabafou.

Ele citou o exemplo da mineração de ouro em sua diocese: segundo Dom Santos, empresas estrangeiras levam embora o ouro de Honduras em helicópteros, sem passar pela alfândega.

"Eles não pagam impostos sobre ele, apenas uma pequena quantidade para as prefeituras. Nós, hondurenhos, não sabemos quanto as empresas levam embora ou quanto isso vale. Por que não sabemos disso?"

Dom Santos disse que não tem interesse em modelar a sua possível presidência de acordo com a de Fernando Lugo, o bispo paraguaio que virou presidente, "porque ele abriu mão de tudo. Ele deixou o ministério para trás e foi eleito como leigo. Eu vou continuar sendo sacerdote, mas sem qualquer posição dentro da Igreja".

Se não for eleito presidente, disse Dom Santos, ele planeja trabalhar com os agricultores indígenas Lenca para expandir as oportunidades de educação e desenvolver um melhor comércio para a sua produção agrícola.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Concílio Vaticano II e a América Latina

“O Concílio Vaticano II significou uma mudança para uma nova época nas relações entre Roma e as Igrejas da nova evangelização, de maneira particular com a América Latina”, escreve Marco Tosatti, em artigo publicado no sítioVatican Insider, 14-10-2011. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

João XXIII, em 11 de outubro de há quase 50 anos – o meio século será celebrado dentro de exatamente 12 meses –, inaugurava solenemente na Basílica vaticana o segundo Concílio Vaticano; um evento destinado a ficar assinalado como um momento crucial, para o bem ou para o mal, nos dois mil anos de história da Igreja. O Papa Roncallicomeçou a reunião de bispos, patriarcas e cardeais de todo o mundo com um discurso histórico, “Gaudet mater ecclesiae” (Alegra-se a mãe Igreja). Qual era o objetivo do Papa? Suas palavras o explicam: “É necessário que esta doutrina certa e imutável, na qual se deve crer fielmente, seja aprofundada e exposta segundo as exigências de nossos tempos. Outra coisa é, de fato, o depósito da Fé, ou seja, as verdades que contêm nossa venerável doutrina, e o modo como são anunciadas, sempre com o mesmo sentido e aceitas do mesmo modo.

Foram pronunciados rios de palavras e escritos sobre o Concílio, sobre seus efeitos e suas consequências; talvez nenhum acontecimento ao longo de toda a História da Igreja deu lugar a interpretações tão lacerantes. Mas uma coisa é certa, ultrapassando as posições inclusive opostas, e consiste em que o Concílio Vaticano II significou uma mudança para uma nova época nas relações entre Roma e as Igrejas da nova evangelização, de maneira particular com a América Latina. É certo também que a África e a Ásia viveram como protagonistas a estação pós-conciliar. Mas a simples força dos números e das raízes pluricentenárias da fé no subcontinente americano o converteram em protagonista.

Foi a própria natureza do Concílio, marcadamente pastoral, que ajudou neste processo; não foram proclamados novos dogmas, embora os mistérios da Igreja e da Revelação fossem enfrentados dogmaticamente, mas a palavra de ordem foi interpretar os “sinais dos tempos”; a Igreja teria que dar um salto na sua maneira de se aproximar da realidade mundial, e das feridas causadas pelas ditaduras ateias do século XX. Uma exortação que o Papa Roncallifez ressoar, falando dos “profetas das calamidades”: “Nas condições da sociedade humana estes são capazes de ver unicamente ruínas e problemas; vão dizendo que nossos tempos, comparados com os séculos passados, são piores em tudo; e chegam até o ponto de se comportarem como se não tivessem nada a aprender da história, que é mestra de respeito à doutrina cristã, à moral e à justa liberdade da Igreja”. Não foi pura casualidade o fato de que entre os 2.500 prelados e altos dignitários da Igreja que participaram nesse 11 de outubro da cerimônia celebrada em São Pedro, o bispo mais jovem fosse sul-americano: o peruano Dom Alcides Mendoza Castro, de 34 anos, bispo titular de Metre, auxiliar de Abancay, nascido em 14 de março de 1928, eleito bispo no dia 28 de abril de 1958, e arcebispo emérito de Cuzco.

A Igreja pré-conciliar era uma Igreja substancialmente branca e eurocêntrica, apesar da atividade missionária quePio XI havia posto em marcha, e de sua extraordinária sensibilidade para com a importância das Igrejas locais. Mas foi o Concílio que jogou luz sobre problemas, vitalidade e energia das Igrejas latino-americanas, que pediam uma maior consideração das suas particularidades culturais e religiosas.

E social. A América Latina era, como agora, um continente cheio de tensões e enormes contradições. O resultado de tudo isso foi a chamada Teologia da Libertação, que em suas diversas formas, algumas plenamente aceitas por Roma, e outras abertamente condenadas, é ainda hoje objeto de debate.

A Teologia da Libertação é uma reflexão teológica que teve início na América Latina com a reunião do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) de Medellín(Colômbia), em 1968, três anos depois do encerramento doConcílio Vaticano II, que tende a evidenciar os valores da emancipação social e política presentes na mensagem cristã. Entre seus precursores cabe recordar Gustavo Gutiérrez eLeonardo Boff, além do bispo brasileiro Dom Hélder Câmara. Em certa medida, suas raízes podem ser encontradas na reunião que recebeu o nome de Pacto das Catacumbas, assinado por 40 bispos em uma catacumba de Roma após o Concílio. Com este pacto estes bispos assumiram o compromisso de uma vida pobre a serviço dos pobres. Muitos eram latino-americanos, e na origem destePacto também estava Dom Hélder Câmara. Sua memória estava no ar em Medellín, embora por razões óbvias, nunca fosse mencionado.

O contexto histórico pós-conciliar na América Latina é extremamente conflitivo: uma enorme pobreza, regimes ditatoriais que lutam para manter privilégios, a crescente presença, inclusive militar, do marxismo. Difícil a posição em que se encontra a Igreja, que pede uma opção preferencial pelos pobres, mas que não tem que ser, como dizia João Paulo II, “nem exclusiva nem excludente”. A radicalização teológica da Teologia da Libertação foi seguida depois por uma participação cada vez maior dos leigos na vida da Igreja; que, contudo, nem sempre se mantinha no caminho da correta doutrina e da correta práxis.

As Comunidades Eclesiais de Base (apenas no Brasil nasceram dezenas e dezenas de milhares delas) constituíram um fenômeno explosivo. Se em Medellín, em 1968, os representantes da hierarquia eclesiástica sul-americana tomaram posição a favor dos mais deserdados e suas lutas, pronunciando-se a favor de uma igreja popular e socialmente ativa, na década seguinte começaram a emergir os problemas de extremismo e excessiva presença social da Igreja. Um continente no qual, entre outras coisas, um dos principais frutos do Concílio, ou seja, os movimentos eclesiais, encontrou um terreno prolífico para o seu desenvolvimento. E as teses expressas na presença deBento XVI durante a reunião do episcopado latino-americano de Aparecida, em maio de 2007, confirmam plenamente esta tendência, coerente com a de Medellín, de 1968: leitura da realidade através dos sinais dos tempos; opção preferencial pelos pobres, compromisso com a promoção humana e defesa da dignidade da pessoa. A isso se acrescenta, no marco atual da globalização, a consciência de que estes e outros problemas, de diferentes sinais, como a salvaguarda da Terra, não se reduzem apenas ao continente latino-americano, mas que afetam todos os países do mundo e a totalidade da humanidade. Não é por acaso que as duas únicas viagens intercontinentais realizadas até agora por Bento XVI tenham tido como destinos a América Latina e os Estados Unidos, onde a presença dos católicos de origem hispânica há ultrapassa os 30% da totalidade dos fiéis da Igreja de Roma.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Padre maryknoll que defende a ordenação feminina é detido no Vaticano



Depois de marchar até a larga avenida rumo à Praça de São Pedro, o padre maryknoll Roy Bourgeois e outras duas manifestantes que apoiam a ordenação de mulheres foram brevemente detidos pela polícia italiana.

A reportagem é de Carol Glatz, publicada no sítio Catholic News Service, 17-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Um grupo de 18 pessoas, a maioria dos Estados Unidos, estavam tentando entregar a autoridades do Vaticano um abaixo-assinado de apoio à ordenação de mulheres como sacerdotisas católicas.


A petição, assinada por 15 mil pessoas, elogiava o trabalho do Pe. Bourgeois, que enfrenta a possível demissão de sua ordem e do sacerdócio por sua recusa a se retratar de seu contínuo apoio à ordenação feminina.


A ordem Maryknoll emitiu dois alertas canônicos para o padre de 73 anos de idade neste ano. Ele foi excomungado latae sententiae – automaticamente – em novembro de 2008 depois de participar da tentativa de ordenação de Janice Sevre-Duszynska, que também estava na manifestação desta segunda-feira em Roma.


O Pe. Bourgeois ainda permanece junto à Sociedade Maryknoll enquanto o assunto está sendo revisado, informou a ordem em um comunicado escrito para o Catholic News Service no dia 11 de outubro.


A Sociedade Maryknoll disse estar ciente de que o Pe. Bourgeois estava viajando para Roma e acrescentou: "Desde o início, tem sido a Maryknoll que repetidamente tem tentado fomentar a comunicação entre o Pe. Bourgeois e a Igreja".


O Pe. Bourgeois disse aos jornalistas: "Eu não quero ser expulso". Ele disse estar lutando "pelo que é justo" e aceitaria qualquer decisão que a sua ordem tomasse "sem raiva".


Ele disse que a proibição da Igreja sobre a ordenação de mulheres "desafia a razão e desafia a fé" e tem em suas raízes "o pecado do sexismo".


Os manifestantes, incluindo duas mulheres que afirmam ser sacerdotisas e uma que afirma ser diaconisa, caminharam de Castel Sant'Angelo à Praça de São Pedro portando cartazes que diziam: "Deus está chamando mulheres para serem sacerdotisas" e "Ordenem mulheres católicas", enquanto cantavam e batiam em um pequeno tambor.


O Vaticano não permite protestos, manifestações ou cartazes na propriedade do Vaticano, e a polícia italiana não permitiu que o grupo entrasse na Praça de São Pedro.


A polícia explicou ao grupo que era ilegal realizar uma manifestação sem permissão e que teria sido mais apropriado ter convidado as autoridades do Vaticano previamente, a fim de entregar o abaixo-assinado.


"Não é como entregar uma pizza. Você não pode simplesmente aparecer" sem aviso prévio e sem autorização, disse o policial à paisana.


"É uma pizza muito importante", gritou um dos manifestantes.


O Pe. Bourgeois foi avisado várias vezes pela polícia italiana que eles não poderiam impedi-lo de entrar na Praça de São Pedro sozinho para tentar entregar a petição para alguém no Vaticano, mas o grupo como um todo e, especificamente, as mulheres vestidas como sacerdotisas não poderiam entrar na praça, porque "a sua forma de vestir é uma forma de protesto".


No entanto, a situação ficou tensa quando a polícia tentou confiscar os cartazes e panfletos do grupo. Membros do grupo se recusaram a entregar porque os banners de lona custam muito caro para serem produzidos, explicou um manifestante.


Por causa de sua recusa a entregar os cartzes de forma pacífica, o Pe. Bourgeois e dois membros do grupo, Erin Saiz Hanna, diretora-executiva da Women's Ordination Conference, e Miriam Duignan, da WomenPriests.org, foram levados para uma delegacia italiana próxima. Eles não foram presos, e nenhuma acusação foi feita contra eles.


Em 2008, a congregação doutrinária decretou formalmente que uma mulher que tenta ser ordenada sacerdotisa católica e a pessoa que tenta ordená-la são automaticamente excomungadas. Em 1994, o Beato Papa João Paulo II disse que a proibição da Igreja sobre as mulheres-padre é definitiva e não está aberta ao debate entre os católicos.



quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Quando o Twitter se torna a oração da manhã


''Eu vivo no futuro'': o livro do guru da Internet Nick Bilton. No futuro, em breve, em nossas várias telas, vai contar sempre mais a experiência personalizada: os jornais serão à nossa imagem e semelhança.

A reportagem é de Riccardo Stagliano, publicada no jornal La Repubblica, 27-09-2011. A tradução é deMoisés Sbardelotto.

A mensagem é a mensagem. O meio não conta nada. A única diferença, agora, é do comprimento e da largura. Do "conteúdo" e da tela. Caso contrário, textos, áudio, vídeo são todos, indiferentemente, dados. Adeus, Marshall McLuhan; olá, Nick Bilton.

Em uma hipotética scala de entusiasmo com relação às revoluções digitais, de um a cem, o jornalista do New York Times e professor da New York University está localizado na zona 99. No seu Io vivo nel futuro [Eu vivo no futuro] (Ed. Codice, 217 páginas), ele argumenta sem reservas sobre por que o hoje é melhor do que ontem, e o amanhã será ainda mais luminoso.

Para quem, ainda, coloca a web do lado das sete pragas do Egito da cultura, ele recorda que os mesmos medos infundados tomaram conta das sociedades à véspera de outras descontinuidades, da locomotiva ao telefone. Ele liquida os tecnocéticos ("em sua maioria, coisas absurdas"), sobretudo Nicholas Carr, que, em um livro, se interroga se a Internet está mudando a massa cognitiva da qual somos feitos. Ele se engaja em um corpo a corpo com um jornalista da New Yorker, acusado de ter defendido que o magma do Twitter se assemelha mais ao inferno do que ao paraíso da informação. E pensar que ele, Bilton, promoveu hegelianamente a "oração matinal do homem moderno": "A quantidade de informações que fluíam na minha tela era absolutamente exagerada e, muitas vezes, redundante. Agora, vou ao Twitter; ali, encontro o melhor do que qualquer um escolheria seguir".

E aqui, com todo o otimismo da razão telemática, eu realmente não consigo segui-lo. Porque, se há um lugar onde se celebra a apoteose da redundância, é justamente o serviço de microblogging. Se o autor, no entanto, nos submerge sem nos afogar é porque ele vive as redes sociais como "comunidades-âncora", ou seja, lugares onde as escolhas coletivas dos membros, "a inteligência do enxame" teorizada pelo estudioso Gerardo Beni, o ajudam a escolher (a propósito, aprende-se também que o oposto de "nativos digitais" é "imigrantes digitais", e que a dicotomia é de Marc Prensky).

Bilton confia mais na indistinta nebulosa dos seus semelhantes do que nos colegas jornalistas. Ele lembra que, de 1985 a 2009, a confiança dos norte-americanos na precisão das notícias caiu de 55% a 29%. E indica, na socialização da sua seleção, um possível antídoto.

O seu raciocínio, como qualquer bom guru que se respeite, é corroborado por uma série de slogans, imagens e neologismos. Convincentes na substância, mas nem tanto na forma. Ele distingue entre "bytes, lanches e refeições", mas semanticamente o primeiro termo é um intruso.

"No meu celular", ele explica, "agora eu leio livros, artigos, vejo filmes e navego". Ex-objetos diferentes que diferem agora apenas nos tamanhos. E ainda em "30, 60, 3", os três tamanhos da fruição. O smartphone é mantido a 30 cm dos olhos. O tablete portátil a 60. A TV, a 3 metros.

Ele batiza a categoria de "consumívoros", que, além de consumir, criam os conteúdos, esquecendo-se, porém, queAlvin Toffler já havia feito isso em 1980. Com a vantagem de que o prosumer era entendido na mosca (producer maisconsumer), enquanto o a alternativa biltoniana soa mais como um pleonasmo.

Com exceção dessas rebarbas, o futuro que ele imagina é inverossímil. O que irá contar será sempre mais a experiência personalizada. Um jornal online, com a cumplicidade de celulares inteligentes, poderá nos servir com notícias diferentes se ele souber onde nos encontramos ou que é a hora de almoço. Com toda honestidade, isso já estava previsto. No final dos anos 1990, por Walter Bender, do Media Lab, de Boston. Agora, porém, estamos mais perto.

"Agora, o mundo digital segue você, e não o contrário", assegura, "e se você é uma empresa que se ocupa com a mídia, você pode eliminar tranquilamente a segunda sílaba da palavra. Existe apenas o 'me'" [eu, em inglês]. Talvez, mas não tenho certeza de que há motivos para festejar.

O "daily me", os jornais à nossa imagem e semelhança, correm o risco de se tornar janelas egocêntricas sobre o mundo. Se, como sociedade, ainda temos assuntos comuns de conversa, devemos isso ao fator "serendipidade" do qual os jornais são sadios portadores.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Como vivem os 350 milhões de fieis de Jesus que sofrem perseguição ou discriminação


Nos primeiros tempos de suas novas vidas em países ocidentais, eles se extasiavam diante das igrejas abertas e iam à missa todos os dias, mais de uma vez, para recuperar o tempo perdido. Milhares de cristãos, tanto católicos como evangélicos e ortodoxos, abandonaram nos últimos anos seus países de origem, alguns deles muçulmanos, onde a radicalização do Islã consolidou uma perseguição religiosa. Outros tantos ficaram por falta de recursos econômicos para emigrar, por convicção religiosa ou porque trata-se de seu país. É difícil precisar os números da repressão, devido à falta de democracia, às deficiências do Estado e a falta de transparência nas informações dos países em questão. Contudo, segundo o Informe de Liberdade Religiosa no Mundo de 2010 – elaborado todos os anos pela Ajuda à Igreja Necessitada (AIN), associação internacional vinculada à Santa Sé -, cerca de 350 milhões de cristãos sofrem perseguição ou discriminação no mundo, desses, 200 milhões enfrentam perigo de morte. Um terço da população do planeta é cristã: 2,1 bilhões de fiéis, dos quais 1,18 bilhão são católicos.

A reportagem é de Maria Paz Lopez, publicada pelo jornalLa Vanguardia e reproduzida pelo Portal Uol, 02-10-2011.

“Nos lugares onde não há liberdade religiosa, tampouco há liberdade democrática”, alerta Javier Menéndez Ros, diretor da AIN-Espanha, que durante a recente Jornada Mundial da Juventude de Madri com o Papa organizou na capital uma exposição fotográfica sobre os cristãos perseguidos. Em uma semana, a exposição recebeu um público de 8 mil pessoas. As massas de jovens católicos que tomaram Madri em agosto constituem uma imagem de normalidade inconcebível em outros lugares do planeta. Os cristãos do Iraque o sabem bem. “Durante a ditadura deSadam Hussein, os cristãos não eram cidadãos de primeira classe, mas não eram perseguidos – explica Raad Salam, iraquiano nacionalizado espanhol, que vive na Espanha há quase vinte anos depois de escapar do regime de Sadam.

Desde a guerra de 2003, que levou os xiitas ao governo, o radicalismo islâmico persegue cada vez mais os cristãos”. Para Salam, recordar os europeus do risco que os cristãos enfrentam em alguns países é um imperativo moral, porque “a sociedade ocidental parece não se dar conta, está adormecida, só reage quando há muitos mortos”. Contudo, houve uma conscientização a respeito do tema depois das matanças no Iraque, dos ataques a igrejas cópticas no Egito, e dos assassinatos de políticos cristãos paquistaneses que defenderam Asia Bibi, católica condenada pela lei da blasfêmia. Nesses países, os cristãos – embora tenham presença histórica há séculos – são percebidos como “amigos do Ocidente”, o que os transforma em suspeitos.

Este preconceito castiga especialmente os evangélicos, que estão mais relacionados com os Estados Unidos – potência detestada por muitos regimes muçulmanos – do que os católicos. Em muitas ocasiões, a integridade física não corre perigo, mas as perspectivas de vida dos fieis são prejudicadas porque a lei cria mecanismos opressores: o cristão não pode prestar concurso ou exercer certas profissões, o clero é assediado, a circulação de Bíblias é proibida, e não se pode abirr escolas e seminários. Em países muçulmanos onde o cristianismo é tolerado, a prática da fé implica complicações, como relata A.A. (iniciais fictícias), convertido ao catolicismo, na Argélia. “O cristão argelino deve ir sempre à mesma igreja para ser reconhecido pela comunidade; é comum que o sacerdote acolha os fieis na porta para reconhecê-los, pois há um verdadeiro temor de que entrem pessoas estranhas”, explica. Não é raro que a polícia pare pessoas com características físicas de argelinos para perguntar porque estão entrando ali e se são cristãs; “é uma vigilância policial que incomoda os argelinos e os desanima de ir à igreja por medo de represálias; em geral, os europeus e outros estrangeiros não são alvo desse interrogatório”.

A missa dominical na Argélia acontece às seis da tarde, pois o domingo do mundo islâmico é dia de trabalho; e às sextas-feiras costumam acontecer às dez ou às onze da manhã. “Essa missa é muito mais frequentada porque a sexta-feira é dia de folga – esclarece A.A. -, mas muitos não podem comparecer porque os lugares de culto ficam distantes de suas casas (há pessoas que viajam 60 a 70 quilômetros para ir à missa) e porque há menos transporte público por ser dia de folga.” Mas o mais difícil é o contexto social e familiar: “as obrigações familiares do fim de semana numa sociedade onde a vida social é muito invasiva podem impedir os fieis de ir à missa, sobretudo aqueles que vivem sua fé de forma escondida. A ausência de uma pessoa todas as sextas-feiras, dia de culto para os muçulmanos, pode suscitar perguntas nas famílias e levantar suspeitas”. O convertido vive em terreno delicado.

Geografia da intransigência

Saber quais países são os mais perigosos para os cristãos é complexo. O informe da Ajuda à Igreja Necessitada (AIN) de 2010 analisa 194 países, detecta problemas em 90 e assinala graves violações à liberdade religiosa – dos crentes de todas as religiões, mas com atenção especial para os cristãos – na Arábia Saudita, Bangladesh, Egito, Índia, China, Uzbequistão, Eritreia, Nigéria, Vietnã, Iêmen e Coreia do Norte, mas sem estabelecer uma hierarquia entre eles. A associação cristã internacional Open Doors elabora uma lista anual de países onde os cristãos sofrem perseguição e os classifica por ordem de periculosidade. Os cinco que seguem são: Paquistão, Eritreia, Mauritânia, Butão e Turcomenistão. O Departamento de Estado dos Estados Unidos também publica um informe anual sobre liberdade religiosa que analisa a perseguição e a discriminação contra fieis de todas as religiões, não só a cristã, mas sem fazer uma classificação. Seu informe de 2010 destaca vulnerabilidades nos seguintes países: Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, China, Coreia do Norte, Cuba, Egito, Eritreia, Indonésia, Irã, Iraque, Quênia, Laos, Malásia, Maldivas, Marrocos, Nepal, Nigéria, Paquistão, Rússia, Somália, Sudão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Venezuela e Vietnã.
Raad Salam, caldeu iraquiano, mora na Espanha há vinte anos

“Os caldeus viviam no Iraque antes da chegada do Islã”

Raad Salam chegou à Espanha em 1992, com status de refugiado político segundo a ONU, depois de ter sido sentenciado à morte por Sadam Hussein e de ter fugido do Iraque. “Não me prenderam por ser cristão; condenaram-me por ser pacifista subversivo, eu escrevia artigos, promovia atos de protesto”, explica Raad Salam, que por causa da mobilização geral de recrutas teve que participar da guerra contra o Irã (1980-88) e da primeira Guerra do Golfo (1991). Conseguiu fugir da prisão porque seu pai subornou os carcereiros. Como refugiado, passou pela Espanha a caminho dos Estados Unidos, mas por fim se instalou no primeiro país.

Solteiro, com 51 anos, Raad Salam mora em Cobenha, uma localidade próxima a Madri. Em seu país, ele havia se formado em Economia e Estudos Árabes e Islâmicos, e fez doutorado em Filologia Árabe e História do Islã na Universidade Complutense de Madri. Ele é caldeu por nascimento (a igreja caldeia, antiquíssima, obedece ao Papa), e em outubro viajará ao norte do Iraque para convencer os cristãos iraquianos de que não fujam para o exterior. “Sei que é egoísta, porque eu sofri em meu país, fui sequestrado e condenado, ainda que por outros motivos, mas agora estou a salvo na Espanha, e peço que eles fiquem”, disse.

Assassinatos e ataques a igrejas aumentaram desde a guerra. Na época de Sadam, havia 1,5 milhão de cristãos no país – entre siríacos, caldeus e ortodoxos – e se calcula que ainda existam entre 300 mil e 500 mil. Os que fogem buscam um lugar seguro na Europa, Estados Unidos ou Austrália. Salam também sente a dor da perda cultural que o êxodo implica. “Os caldeus têm uma história antiga, estamos na Mesopotâmia desde o século 1, somos daIgreja de São Tomás de Aquino, o Islã chegou depois, e não temos porque sair de nossa terra”, diz. Os caldeus falam aramaico, mas “a segunda geração que está sendo criada na França ou na Alemanha já não conhece o idioma”, lamenta.

Embora o Islã proíba o consumo de álcool, ele era tolerado na época de Sadam; como não precisavam obedecer este preceito, os cristãos costumavam vender álcool. “Começaram os ataques às lojas e as ameaças”, diz Salam, cuja família se dedicava ao ramo.
Paul, convertido argelino, agora mora em Paris

“A internet e as redes sociais permitem que nos sintamos menos isolados”

Para um convertido, a internet é uma grande ferramenta. “Eu a uso; a internet foi muito importante no meu caminho – explica Paul, argelino residente na França, que se converteu ao catolicismo – porque permite escapar da rigidez familiar muçulmana e consultar outras fontes, fazer-se perguntas”. Ao se converter, escolheu se chamar Paulpor causa de São Paulo, o apóstolo dos gentis: “com ele, percebe-se ainda mais o quanto Cristo sofreu por todos os homens, seja qual for sua raça ou sua condição geográfica”. Por e-mail desde Paris, Paul – que prefere não revelar seu sobrenome – elogia a internet para quem se inicia em sua nova fé.

“Ela permite entrar em contato com cristãos que podem nos acompanhar em nosso caminho”, escreveu. “Uma das primeiras coisas que fiz depois de minha conversão foi teclar no Google: 'muçulmanos convertidos ao cristianismo' para ver se outras pessoas viviam a mesma situação que eu”. E insiste: “quando algum muçulmano se converte, começa sempre por ficar sozinho e sofrer com o isolamento. A internet e as redes sociais permitem que nos sintamos menos isolados”. Na foto, Paul – com o rosto pixelado – recebe a saudação do cardeal André Vingt Trois, arcebispo de Paris. Um amigo seu, também convertido, que viajou a Madri em agosto para uma palestra de Ajuda à Igreja Necessitada, explica que ficou impressionado com a pergunta de um assistente sobre uma menina muçulmana escolarizada junto com seu filho, que foi tirada da escola quando se interessou pelo cristianismo. Ele diz que respondeu que “todo cristão deve abrir seu coração e sua casa a toda pessoa de outra religião e não deve duvidar em compartilhar sua fé com essa pessoa”.
A.A., argelino convertido que vive na Argélia

“O convertido é visto como um traidor”

Argelino e convertido, como mora na Argélia prefere não revelar seu nome; assim o chamaremos de A.A.. Ele respondeu por e-mail desde seu país sobre a diferença de tratamento entre o cristão de origem e o convertido. “A situação não é fácil para nenhum dos dois num mundo onde a fé cristã é considerada blasfêmia”- relata. “O convertido procedente do Islã mudou de religião, o que faz com que seja visto como um traidor aos olhos da comunidade. Um convertido nascido numa família laica talvez tenha menos dificuldades porque a família pode tolerar sua conversão. Mas a sociedade (amigos, colegas de trabalho, conhecidos...) é hostil ao fato de que o muçulmano traia o Islã para abraçar outra religião. Um convertido nascido numa família muçulmana muito praticante se encontra numa situação mais difícil, que um cristão nascido numa família cristão não é capaz de entender”.

Entre os obstáculos que enfrenta, está “o risco de perseguições morais e físicas”. Assim, “é obrigado a viver sua fé às escondidas sob pena de ser rejeitado por sua família, o que equivale à morte social” – escreve. “O convertido faz perguntas que o cristão de origem (uma minoria mais ou menos aceita) não faz: 'como fazer para viver, casar e morrer de modo cristão às escondidas ou perseguido?”. Além disso, é mais difícil se integrar a uma paróquia. “O cristão nascido em família cristã não têm problemas para ser acolhido na Igreja e na comunidade cristã – esclarece -, enquanto que os convertidos são acolhidos com muita prudência pelas igrejas locais, por causa dos problemas ligados à segurança e às perseguições.” O convertido que foi à palestra em Madri acrescenta que “a influência e a intimidação das famílias do entorno muçulmano” são um obstáculo à opção individual de mudar de religião.