terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O governo da transição


Dom Demétrio Valentini
O governo da transição
Dom Demétrio Valentini é Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira
Fonte: CEBI


Como estamos em fim de mandato, e na expectativa da posse dos eleitos, daria para dizer que estamos em tempos de transição. Isto pode ser verdade. Mas dependendo do caso, existe uma diferença muito grande, que se expressa por uma simples preposição. Um governo pode ser de transição. Como pode igualmente ser da transição.

O governo Lula, que está se concluindo agora, não foi um governo de transição. Mas foi o governo da transição.

Uma pequena história ajuda a perceber a diferença. Quando em 1958 foi eleito Papa o Cardeal Ângelo Roncalli, de 77 anos de idade, para substituir o grande Pio XII, surpresos com a eleição daquele velhinho desconhecido, todos pensavam que se tratava de um "papa de transição". Seu pontificado duraria poucos anos, enquanto iria aparecer alguém à altura, para levar adiante o grande pontificado de Pio XII. Mas o velhinho simpático, que tinha assumido o nome de João 23, não demorou em mostrar a que tinha vindo. Granjeou rapidamente a simpatia do povo, e foi logo dizendo que propunha um concílio ecumênico para promover uma grande "atualização" da Igreja, para reconciliá-la com os novos tempos que o mundo estava vivendo.

O entusiasmo foi tanto, que ninguém mais pode deter o processo que levaria ao Concílio Vaticano II, com suas generosas propostas de renovação eclesial.

Foi então que a eleição do velho cardeal revelou o seu significado verdadeiro. O seu não seria um pontificado "de transição", mas "da transição".

Agora estamos diante de um fato semelhante. Quando Lula foi eleito presidente em 2002, alguns achavam que, quando muito, seu governo seria "de transição". Um operário na presidência seria um acidente de percurso. Em breve a trajetória política do Brasil iria retomar seu rumo, e as elites teriam de volta o comando das ações.

Mas, aconteceu o inesperado. O que se supunha ser um governo de transição, passou a ser o governo da transição.

O presidente operário foi mostrando como é possível governar para todos, e não só para uma minoria de privilegiados.

Os dois mandatos do Presidente Lula armaram no Brasil o grande cenário de uma verdadeira transição, que agora precisa ser consolidada pelo governo da Presidente Dilma.

A transição das vantagens das elites para o interesse das maiorias. Do privilégio de poucos, para o benefício de todos. Do processo de exclusão, para a dinâmica social e econômica da inclusão dos mais injustiçados e oprimidos. Do preconceito racial e cultural que divide, para o respeito mútuo que enobrece. Das marcas deixadas pelos tempos da escravidão, para a libertação do trabalho escravo e de todas as discriminações. Da pretensão de poucos, para a plena dignidade de todos os cidadãos.

O grande mérito do governo Lula foi ter rompido as barreiras da resistência ao um novo projeto de país, que tenha como postura básica a convicção da igualdade de direitos e a universalidade da cidadania.

Esta grande e decisiva "transição", realizada pelo presidente Lula, precisa agora ser confirmada pelo governo da Presidente Dilma. Pois as conquistas ainda não estão consolidadas. É preciso, agora, passar para a normalidade democrática as grandes intuições de um governo que permanecerá como referência inspiradora para levar à prática suas generosas utopias de um país para todos.

O legado de Lula foi desencadear a grande transição. O compromisso da Dilma é garantir sua consolidação.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A Cristandade se acabou. Viva a fé!


A celebração do Natal vem nos recordar de que a paz nunca se fará pelas armas


Marcelo Barros

Este é o título do editorial de um número recente da revista Le Monde des Religions, (outubro 2010). Esta afirmação não parece confirmada quando vemos como o comércio e o consumismo tomaram conta da festa do Natal. A cultura parece ainda cristã, mas sem a profundidade que o Evangelho pede a quem crê. De fato, em um mundo individualista e competitivo, é ótimo que o Natal seja ocasião de encontro humano e confraternização das famílias e amigos. Pode ser positivo que, para muitas pessoas, esta festa não fique restrita à fé cristã. Ela nasceu no século IV de uma comemoração do solstício do inverno. Celebrada em seu início pelos seguidores da antiga religião romana, hoje se tornou uma festa mais humana do que religiosa. Entretanto, é lamentável que o seu conteúdo cristão tenha sido substituído pela febre do comércio e pelo Papai Noel das lojas e da cultura consumista.

Como qualquer pessoa pode constatar, este assunto pode ser visto, ao menos, por dois ângulos diversos. Depende do que se entende por “Cristandade” e por Cristianismo. Há quase 50 anos, durante o Concílio Vaticano II, ao ver o esforço da Igreja Católica se renovar em suas bases mais profundas, Paul Ricoeur, pastor evangélico, afirmava: “A Cristandade está morta. Viva o Evangelho!”. Isso pode parecer estranho para quem não percebe que, desde muitos séculos, governos e sociedades se aproveitaram de sua ligação com a Igreja, (católica ou evangélica), para se perpetuar e se legitimar com uma aparência de fé e uma tintura de espiritualidade cristã. Já no século XIX, Soren Kierkegaard,filósofo dinamarquês e pensador cristão, refletia: “A Cristandade é o regime no qual uma sociedade faz tudo para permanecer como é, injusta e desigual em suas bases e, ao mesmo tempo, usar os aspectos exteriores e a aparência de Cristianismo para se desembaraçar da mensagem do Evangelho”. Em nossos dias, durante uma palestra do padre José Comblin, um participante externou o seu descontentamento com o tipo de mundo que, durante vinte séculos, as Igrejas não conseguiram transformar para melhor. O teólogo Comblin respondeu: “É verdade. Mas, de fato, até hoje, o Cristianismo nunca foi vivido, a não ser por pouquíssimas pessoas que sempre contestaram este modelo social de mundo”. O primeiro destes contestadores foi o próprio Jesus Cristo. Ele chegava a dizer aos religiosos da época: “As prostitutas e os desonestos cobradores de impostos a serviço dos romanos (odiados pelo povo judeu) participarão do reinado divino mais do que vocês” (Mt 21, 31). Ele não aceitava que a sociedade, em nome da religião e de Deus, condenasse uma mulher adúltera e nada dissesse ao homem com quem ela tinha relações. Não se pode culpabilizar apenas a parte mais frágil. É o que, nestes dias, vimos em toda esta campanha com a qual os meios de comunicação noticiaram a guerra da polícia e do governo do Rio de Janeiro contra o tráfico nas favelas. Todos concordamos em libertar os morros cariocas do domínio do crime e ficamos felizes em ver o povo se declarar contente com a ação da polícia. Mas, o que não apareceu em nenhum órgão da imprensa foi o lado oculto do sistema. Se traficantes mantinham na favela toneladas de drogas e montavam casas ricas e com piscinas é porque barões das classes mais altas sustentam e garantem o comércio. E sem dúvida, estes senhores importantes não moram no Morro do Alemão. Nem a policia, nem jornalistas fizeram menção deste elo da corrente. Sem as pessoas de classe alta que financiam o tráfico e os de classe média que compram as drogas, estas não seriam distribuídas e se acabariam por si mesmas.

A celebração do Natal vem nos recordar de que a paz nunca se fará pelas armas. Contam que uma vez alguém perguntou a São Francisco de Assis como se poderia vencer as trevas da violência e do mal. Ele respondeu: “Para que agredir as trevas? Basta acender uma luz e as trevas fogem apavoradas”. De fato, a verdadeira paz é o esforço de transformar as tensões destrutivas em polaridades criativas. Isso não se constrói com soldados armados e sim com educadores/as e artistas que expressem a beleza e ajudem as pessoas a conviver melhor. Ao contrário de transformações superficiais, o verdadeiro Natal é anúncio de paz para toda pessoa a quem Deus ama. Jesus revelou a predileção divina pelos mais pobres e desprotegidos. Na noite escura do inverno do mundo, a luz divina vem iluminar nossas consciências e nossas realidades. Ela nos dá uma consciência mais crítica e a liberdade interior de colaborar sempre pela construção de uma sociedade nova. Não é um processo mecânico nem automático. Pede nossa adesão. Um antigo pastor da Igreja dizia: “De nada teria adiantado Jesus nascer em Belém se ele não renascer em nosso coração, transformando nossas pessoas e nosso modo de viver.



Marcelo Barros é monge beneditino.