quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Religião sustentável


"O Dalai Lama defende tudo que gente legal defende: o verde, a tolerância com o "outro", um capitalismo do bem, enfim, uma religião sustentável nos termos que ocidentais que migram pra religiões orientais costumam gostar, ou seja, de baixo comprometimento religioso. Além de, nela, não ter nenhum parente chato", escreve Luiz Felipe Pondé, professor de Filosofia, em artigo publicado no jornalFolha de S. Paulo, 26-09-2011.

Segundo ele, "O budismo ocidental que cultua o Dalai Lama é o que eu chamo de budismo light". E conclui: "A espiritualidade do budismo light é semelhante a uma Louis Vuitton falsa. Brega".

Eis o artigo.

Recebemos, recentemente, a visita do líder religioso budista tibetano Dalai Lama. Os iniciados tiveram surtos místicos?

Nada contra ele. De fato, o líder budista tem uma imagem positiva no Ocidente, ao contrário do papa Bento 16, que é visto como conservador.

O Dalai Lama defende tudo que gente legal defende: o verde, a tolerância com o "outro", um capitalismo do bem, enfim, uma religião sustentável nos termos que ocidentais que migram pra religiões orientais costumam gostar, ou seja, de baixo comprometimento religioso. Além de, nela, não ter nenhum parente chato.

Uma religião sustentável é uma religião na qual ninguém tem de sustentar nada além de uma dieta balanceada, uma bike legal e um pouco de meditação durante a semana. De empresários "do bem" aos falantes da língua tibetana, muita gente correu pra ouvir essa sabedoria "estrangeira".

Religiões são sistemas de sentido. A vida, aparentemente sem muito sentido, precisa de tais sistemas. A profissão pode ser um. A dedicação aos filhos, outro. A história, a natureza, grana também serve. Enfim, muita coisa pode dar sentido a uma existência precária como a nossa, mas nada se compara a uma religião.

Para funcionar, as religiões têm de garantir crenças e constranger comportamentos a partir de liturgias, mitos, exercícios de poder sacerdotais e regras cotidianas munidas de "sentido cósmico".

Você não "acessa" o sentido oferecido sem "pagar", com a própria adesão, o pacote completo. Isso serve para o catolicismo e para o budismo, ao contrário do que pensa nossa vã filosofia "nova era". No Oriente, o budismo é uma religião como qualquer outra, cheia de vícios e abusos.

A crítica à religião no Ocidente passou pela mão de grandes pensadores. Freud disse que religiosos são obsessivos que não sobreviveram bem à falta de amor incondicional da mãe e à miserável castração do pai verdadeiro, daí creem num Deus todo-poderoso que os ama.

Nietzsche identificou o ressentimento como marca dos religiosos que são todos uns covardes. Feuerbach sacou que Jesus é a projeção alienante de nosso próprio potencial.

Marx acrescentou que essa alienação é concreta e que se ganha dinheiro com isso. Enfim: o religioso é um retardado, ressentido, alienado e pobre, porque gasta dinheiro com o que não deve, a saber, os "profissionais de Deus".

O que eu acho hilário é como muito "inteligentinho" acha que o budismo seja uma religião diferente das "nossas".

Ela seria sem "vícios" e "imposições". Pensam, em sua visão infantil das religiões orientais, que dramas sexuais só afetam celibatários de Jesus e não os de Buda, e que o budismo, por exemplo, é "legal", porque não tem a noção de pecado.

O budismo ocidental que cultua o Dalai Lama é o que eu chamo de budismo light. O perfil desse budista light é basicamente o seguinte.

Vem de classe social elevada, fala línguas estrangeiras, é cosmopolita, se acha melhor do que os outros (apesar de mentir que não se acha melhor, claro), tem formação superior, mora na zona oeste ou na zona de sul de São Paulo, come alimentos orgânicos (caríssimos) e é altamente orientado para assuntos de saúde do corpo (um ganancioso com a vida, claro).

E, acima de tudo, acha sua religião de origem (judaísmo ou catolicismo, grosso modo) "medieval", dominada pelo interesse econômico, e sempre muito autoritária.

Na realidade, as causas da migração para o budismo light costumam ser um avô judeu opressivo, uma freira chata e feia na escola e uma revolta básica contra os pais.

Em extremos, a recusa em arrumar o quarto quando adolescente ou um escândalo de pedofilia na Igreja Católica. Além da preguiça de frequentar cultos e de ter obrigações religiosas.

Enfim, essas são a bases reais mais comuns da adesão ao budismo light, claro, associadas à dificuldade de ser simplesmente ateu.

A busca por uma espiritualidade light é como a busca por uma marca de jeans, uma pousadinha numa praia deserta no Nordeste ou um restaurante de comida étnica da moda.

A espiritualidade do budismo light é semelhante a umaLouis Vuitton falsa. Brega.

Em feira evangélica, negócios vão de capa para bíblia a consórcio de igreja

"Não é pecado, não", diz José Luiz Batres, gerente-geral da Nova Vida, grife que vende capas customizadas para a Bíblia. Seu alvo é o público feminino: por R$ 34,99, a consumidora pode adquirir um modelo de couro sintético com estampa de zebrinha e suporte para celular.

A reportagem é de Anna Virgínia Baloussier e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 24-09-2011.

Batres é um dos empreendedores de olho no próspero nicho religioso. "Também percebemos o que a modernidade - chama-se mundo secular, né? - pode trazer ao mundo evangélico."

Na 10ª Expo Cristã, é lucro o que a modernidade traz. Montada no Pavilhão do Anhembi, a feira de negócios voltada a evangélicos reúne mais de 500 expositores.

A expectativa da organização é de movimentar R$ 1 bilhão em novos negócios (direta e indiretamente) até amanhã, último dia do evento, que estima público de 163 mil.

O leque de produtos é amplo. Em meia hora de caminhada, a repórter da Folha recebeu panfletos sobre cadeiras para bufê, poltronas "confortex", consórcio para igrejas (créditos de até R$ 300 mil), pacotes turísticos (de Aruba a Israel), stand-up comedy cristão, o parque de diversão Beto Carrero, filmes, gravadoras e as mais diferentes versões da Bíblia.

Para Eduardo Berzin Filho, presidente da Expo Cristã, o mercado começa a acordar para o poder de compra dos evangélicos.

Ele destaca pesquisa da organização Sepal (Servindo aos Pastores e Líderes) que calcula o surgimento de 10 mil novos pontos de pregação por ano.

"Com que dinheiro essas igrejas vão ser construídas? Oferta!", afirma. Ele complementa, em seguida, que o lucro deve "ser revertido para obras de Deus".

Música e mercado editorial são "os que mais dão dinheiro", avalia Benzin Filho.

Para o pastor Jabes de Alencar, da Assembleia de Deus, "só uma pessoa ignorante" acha que "fé e lucro não podem caminhar do mesmo lado". "A pessoa está dizendo que quem tem fé é alienígena. Mas são pessoas que comem, vão ao banheiro, ao restaurante, vestem, consomem."

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Vaticano II e Zizola: uma resposta à convocação papal ao jornalismo


Temos que perguntar se o Concílio Vaticano II ainda pode "falar" à Igreja, ou se há a necessidade de uma nova escavação em profundidade. A globalização oferece a melhor oportunidade da história para sair da concha do Ocidente para se encontrar com as "novas linguagens".

A análise é do vaticanista italiano Giancarlo Zizola,falecido no dia 14 de setembro passado. Zizola, que vivia em Roma, era considerado o decano dos vaticanistas contemporâneos. Ele cobriu o Vaticano para publicações de diversos países desde antes do Vaticano II. Muitos de seus livros, incluindo biografias dos Papas João XXIII e Paulo VI, foram traduzidos para diversos idiomas.

O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 04-10-2002. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em 1961, o Papa João XXIII me chamou para Romaporque queria que os oito jornais católicos italianos tivessem um jornalista dedicado ao concílio ecumênico que ele havia convocado em 1959. Nesses jornais, a prática nessa época era simplesmente a de republicar as notícias religiosas doL'Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, em que o papa ainda era chamado de "Sua Santidade de Nosso Senhor", e se dizia que ele "recebeu graciosamente o Eminentíssimo e Reverendíssimo Cardeal" ou que ele "pronunciou gentilmente com os lábios augustos" um dado discurso.

Eu fui a Roma do meu vilarejo no nordeste, na província deTreviso, em um pequeno caminhão, com a minha Bíblia, meus livros, minha máquina de escrever portátil e meus 25 anos. A viagem demorou quase a noite toda, porque a estrada ainda não estava concluída. Por várias horas, ficamos presos atrás de um caminhão sobrecarregado e lento, com um sinal na traseira alertando para os "freios poderosos".

Assim, forçado a uma espécie de marcha lenta, eu tive a liberdade para refletir sobre o fato de que, assim como o caminhão, a minha Igreja, que eu amava e ainda amo, também estava sobrecarregada e era lenta, e tinha seus próprios "freios poderosos". Eu não tinha dúvidas de que eles eram necessários. Mas meu jovem motorista de caminhão me indicou que, quando tentamos dirigir com os freios "puxados", eles sobreaquecem, e há o risco de uma catástrofe. Assim, eu pensei que a Igreja, que continuava vivendo com os freios "puxados" pelo menos desde a crise modernista, estava à beira do sobreaquecimento, e que o Papa João havia tido uma inspiração do céu ao oferecer a ela a possibilidade de mudar de rumo.

Nesses primeiros dias, houve, sem dúvida, um elemento de pragmatismo acerca do Concílio. João XXIII disse que, no início do seu pontificado, ele estava sitiado pelos bispos, já que cada um deles havia posto os seus próprios problemas sobre a mesa e propunha reformas. A sua fé era uma fé de olhos abertos, como deveria ser a fé de todos os cristãos, e assim ele concluiu: "Por que todos não vêm para Roma e conversamos sobre essas coisas?".

Que toda a Igreja fale

No entanto, quando eu preparei a primeira biografia dos cinco anos do Papa João (A Utopia do Papa João, 1973), eu coloquei minhas mãos em documentos que comprovam que, para ele, a ideia de um concílio tinha sido uma fixação intelectual desde que ele era um jovem padre. Quando ele era o delegado de Pio XII em Istambul, ele pedia que cada amigo que fosse para Roma lhe trouxesse livros sobre concílios ecumênicos, os primeiros dos quais – poucos – haviam sido realizados em solo turco. O que era natural para ele certamente não era, é claro, para todos. No entanto, ele deixou que toda a Igreja falasse.

O "espírito do Concílio" não era uma atmosfera vagamente utópica e romântica. Para mim, posso dizer que ela tocou no meu sentido da fé cristã em que eu havia sido educado. Muitos da minha geração já haviam lutado na Itália, em grupos da Juventude Católica, contra o uso político da fé. Nosso líder, Marco Rossi, presidente da associação juvenil mais forte da Itália, foi forçado a renunciar pelos líderes da Igreja em 1954. Estes eram os mesmos homens que haviam convencido Pio XII a enviar Giovanni Battista Montini, o futuro Paulo VI, ao exílio em Milão.

Esse golpe havia nos desmoralizado profundamente. Foi a Igreja que nos fez sofrer, e foi terrível ver que ela não conseguia entender que nós lutávamos para libertá-la das suas correntes com o poder político. Nós não fomos os únicos a pedir isso. Os apelos por reforma se multiplicaram entre nós, assim como em muitos outros países. Meus estudos sobre os arquivos do catolicismo na Itália na década de 1950 me revelaram, por exemplo, que a invocação de uma reforma da Igreja surgiu dos mosteiros de clausura, dos setores do clero, dos próprios bispos.

As brasas ardiam sob as cinzas e precisavam apenas de um sopro para queimar novamente. Existia no corpo da Igreja Católica correntes de ideias, de aspirações, de problemas e de demandas que os líderes da época não permitiam que emergissem e, de fato, ignoraram e tentaram impedir. OPapa João tinha tomado a iniciativa de soprar sobre essas cinzas, levando a Igreja pelo caminho da renovação, em um mundo em imensa transformação.

Essa ideia extraordinária de uma Igreja que "muda" nos moveu profundamente. Ela não apenas nos encorajou a permanecer na fé, mas também a mudar a nós mesmos na fé. Eu li, depois, com paixão, os textos do cardeal JohnHenry Newman: "Viver é mudar, e estar vivo é mudar frequentemente". O seu brinde à Carta ao Duque de Norfolk, na qual ele saúda o sumo sacerdócio da consciência antes que o do papa, ajudou-me a entender que eu tinha que trabalhar, juntamente com o Papa João e as suas ideias, para que os católicos, também na Itália, pudessem desenvolver uma compreensão mais evangélica da autoridade de Pedro.

Assim, posso dizer que o amadurecimento da minha fé cristã e o meu "sentire cum Ecclesia" ("pensar com a Igreja") devem muito ao Concílio. Foi uma graça ter sido capaz de acompanhar todas as quatro sessões de perto. Também foi uma escola teológica e uma incrível aventura profissional. Eu recebi o credenciamento para cobrir o Vaticano em 1961, exatamente quando o Vaticano passou a palavra para a Igreja universal, para o ecumenismo, para o diálogo com os judeus. O grande monólito deu lugar à pesquisa e à discussão, e o reinado de dogma abria-se à opinião. O objeto do meu trabalho mudou sob os nossos olhos e "fez notícia".

Saindo da uniformidade

De fato, dois tipos de católicos estavam se confrontando, cada um buscando entender o raciocínio do outro. Para aqueles que estavam fixados na Igreja dos freios, foi uma surpresa: pela primeira vez desde o Concílio de Pio IX, no final do século XIX, a Igreja estava saindo da uniformidade. De modo algum era dado por óbvio que esses dois "partidos" poderiam se entender. Um grupo via na Igreja o depósito confiado por Cristo, uma verdade fixada em definições dogmáticas e ritos, e eles acreditavam que era necessário que toda geração transmitisse essa verdade intacta e inalterada para os que vinham depois.

Para o outro, o que era realmente importante era a evangelização do mundo e sobretudo dos pobres. Eles estavam menos interessados na instituição como tal, no dogma, na moral, do que na "boa notícia" a ser levada aos povos que ainda não a haviam recebido ou que a haviam mal entendido.

Certamente, o Papa João quis o Concílio, e ele disse isso com clareza, não a fim de definir pontos doutrinais ou formular novas condenações, mas precisamente para oferecer a antiga doutrina em uma nova linguagem, e com um magistério prevalentemente pastoral. Um dia, durante a sua audiência com o diretor da Civiltà Cattolica, Pe.Roberto Tucci (hoje cardeal), o papa lhe mostrou um dos esquemas preparatórios: "Este texto, veja, contém 14 condenações. Eu os contei. Quem sabe quantas os outros textos contêm? Podemos continuar assim?".

Mas minha pesquisa me convenceu de que a mudança na mentalidade do Concílio foi inicialmente muito lenta. Acredito que os padres começaram a compreender verdadeiramente as intenções do papa apenas no final da primeira sessão, quando deixaram de lado os esquemas preparatórios e aceitaram um novo método de trabalho.

As relações com a mídia também mudaram. A primeira sessão foi inteiramente secreta. Mas eu tinha certeza de que o papa não desaprovaria se eu quebrasse o sigilo. De fato, além dos seus jornais católicos, eu também escrevia para Il Messaggero, o principal jornal romano, onde eu sistematicamente violava a censura. Eu publiquei a lista das comissões conciliares preparadas pela Cúria e, assim, fiz saber que os grupos diretivos tinham um plano de controle do Concílio, tanto em termos de nomes quanto de conteúdo. Essa revelação levou à primeira afirmação de autonomia por parte dos padres conciliares.

Alguns bispos vinham ao meu encontro durante as tardes e liam para mim as suas notas sobre as intervenções que supostamente deveriam permanecer em segredo. O La Croix também tinha um informante secreto, que era o arcebispo Jean Villot, subsecretário do Concílio e futuro secretário de Estado. Era divertido jogar esse jogo de informações, mas, sem sabê-lo, ajudamos a Igreja a sair da sua fortaleza e a se deparar com as liberdades modernas, sobretudo o direito à informação e os princípios da democracia.

Embora as informações sobre o Concílio foram liberadas no início da segunda seção, em 1963, pelo novo Papa Paulo VI, as dificuldades não tinham acabado para aqueles que não estavam contentes com as verdades oficiais. Eu tive dificuldades por causa de alguns artigos que revelavam a existência de manobras secretas para limitar a liberdade do Concílio sobre os pontos críticos da liberdade religiosa e o texto sobre os judeus. Nessas circunstâncias, eu não posso me esquecer da solidariedade recebida de muitos colegas, entre eles Michael Novak, que escreveu um tributo fervoroso ao "jovem e altamente informado jornalista italiano".

Escola de teologia para jornalistas

A inovação mais importante na sala de imprensa do Concílio foi a de que os resumos dos debates, preparado pelos empregados em grupos de diversos idiomas, foram acompanhados por explicações de especialistas teológicos sobre os pontos em discussão, para que os briefings se transformassem em uma autêntica escola teológica para os jornalistas da minha geração.

Era uma teologia dinâmica, que seguia em frente. Lembro-me bem da impressão causada em mim pelo bispo deVittorio Veneto, Albino Luciani (o futuro João Paulo I), um amigo da família, quando eu fui vê-lo em seu quarto em um instituto de irmãs em Roma. Ele passava as tardes estudando – ele me disse – porque "tudo o que aprendi naGregoriana é inútil agora. Eu tenho que me tornar um estudante de novo. Felizmente, eu tenho um bispo africano como vizinho de banco da sala conciliar, que dá me os textos dos especialistas dos bispos alemães. Dessa forma, eu posso me preparar melhor".

Os bispos estudavam, mas nós, jornalistas, também tínhamos que nos tornar estudantes de teologia. É uma sorte que os correspondentes do Vaticano que vieram depois de nós não tiveram, e parece-me que o Vaticano não faz o suficiente para tentar reduzir essa diferença cultural.

Gostaria de concluir dizendo que o Concílio foi um momento decisivo, mas ele deve ter um desenvolvimento, um futuro. Ele se desenrolou na cultura católica ocidental, mas essa cultura já não domina mais a sociedade. A história mostra que os concílios tiveram o seu efeito, se não lentamente, pelo menos durante um longo período de tempo, com fases difíceis de recepção e também com rejeições.

O caso do Concílio Vaticano II é único: ele foi seguido por uma mutação na sociedade, os eventos de 1968, sem precedentes históricos, ao menos em termos de radicalidade, rapidez e universalidade. Essa mudança antropológica já deslocou a linguagem e as categorias filosóficas em que o Concílio se expressou.

Portanto, temos que perguntar se o Concílio ainda pode "falar" à Igreja, ou se há a necessidade de uma nova escavação em profundidade. Em certas áreas, o processo de renovação lançado pelo Concílio foi além das expectativas: por exemplo, no diálogo com os judeus, na liberdade religiosa, na paz, no diálogo inter-religioso. O desenvolvimento empreendido por João Paulo II de uma consciência autocrítica na Igreja, especialmente o seu “mea culpa” durante o Ano Jubilar, está no melhor espírito do Concílio. Mas isso não foi suficiente para derrotar a velha tentação da Igreja de se tornar poderosa no meio do mundo.

Em outras frentes, também é preciso reconhecer que grupos poderosos conseguiram pôr em xeque a esperança de uma Igreja de comunhão, com um governo colegial, um sínodo deliberativo, um laicato pró-ativo, uma reforma do papado, uma maior fé nas igrejas locais e uma maior descentralização, e um esforço coerente para sair de uma monoinculturação ocidental da fé, a fim de ir ao encontro das culturas asiáticas e africanas.

Essa falta de reformas é o que torna o movimento da Igreja mais uma vez pesado e lento. O papa viaja pelo mundo em um avião, mas a Igreja está mais uma vez viajando com os freios "puxados".

Enquanto isso, os incensos da mídia ameaçam envolver a Igreja em uma nuvem especulativa, em que as realidades da crise da fé são facilmente ignoradas, justamente na hora em que a globalização oferece a melhor oportunidade da história para revitalizar a operação de São Paulo: ou seja, sair da concha do Ocidente para se encontrar com as "novas linguagens", assim como Paulo levou a primeira comunidade de discípulos para fora da concha mosaica.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Oscar Romero, crônica de um martírio


Hoje sabemos que Oscar Romero não foi só um "mártir da justiça, da verdade e da caridade", segundo a definição do cardeal Martini, mas também uma vítima da Guerra Fria. Esse é um dos méritos da biografia escrita por Ettore Masina, um clássico que a editora Il Margine republica em uma edição revisada e atualizada (L’arcivescovo deve morire. Oscar Romero e il suo popolo, 376 páginas).

A reportagem é de Andrea Ambrogetti, publicada no jornal Europa, 21-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Os grandes atores desse conflito de muitas décadas, os poderosos do mundo – Masina o reconstrói em detalhes – poderiam ter economizado Romero. Mas que poderiam ter acabado com o genocídio, as injustiças, a fome, a miséria e também a perseguição anticatólica, isso é outro assunto.

Nos anos 1970, a obra do arcebispo de San Salvador já era conhecida em nível mundial (um título doutor honoris causa em Louvain, candidato ao Nobel da Paz por 118 membros britânicos) e o arquivo com o seu nome estavam sobre a mesa do papa a do presidente dos Estados Unidos.

O Papa Montini antes e o Papa Wojtyla depois estão a par dos riscos corridos pelo arcebispo. Romero os encontrou mais de uma vez e mais de uma vez lhes escreveu.

Ele, que jamais renunciar ao amor pela Igreja, à distinção entre busca da justiça e programas políticos individuais, até mesmo ao valor da unidade dos bispos, continuou tendo confiança e obedecendo.

Com a posse na Casa Branca de Jimmy Carter (ao qual Romero também escreveu pessoalmente), o embaixador dos EUA em San Salvador se encontrou com o arcebispo mais de uma vez para entender como encaminhar o país rumo à normalização. As ditaduras que subjugaram a América Latina chegaram ao fim, mas havia incerteza sobre os modos e os tempos. Carter queria impor uma maior atenção aos direitos humanos, mas a prioridade era impedir a difusão do comunismo.

Em El Salvador, a vida continuava entre tiros contra os campesinos e marchas fúnebres, mulheres violentadas, sacerdotes assassinados. Além disso, havia algo inconfessável: os esquadrões da morte e os milhares de desaparecidos. Mas como em todas as "crônicas de uma morte anunciada", os meses, as semanas e os dias se sucediam implacavelmente. Foram poucos os que se surpreenderam quando o tiro que partiu o coração do arcebispo chegou no dia 24 de março de 1980.

No dia 7 de maio de 2000, na sugestiva cerimônia jubilar realizada no Coliseu, João Paulo II inseriu Romero entre os novos mártires. Muitos hoje se perguntam se não chegou o momento de proclamá-lo santo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Marx estava certo... sobre o capitalismo


Como efeito colateral da crise financeira, mais e mais pessoas estão começando a pensar que Karl Marx estava certo. O grande filósofo, economista e revolucionário alemão do século XIX acreditava que o capitalismo era radicalmente instável.

A terxto é de John Gray, filósofo político e escritor, publicado pela BBC Brasil e reproduzida pelo Portal do jornal O Estado de S. Paulo, 18-09-2011.

Ele tem uma tendência intrínseca de produzir avanços e fracassos cada vez maiores, e no longo prazo, ele estava destinado a se autodestruir.

Marx saudava a autodestruição do capitalismo. Ele era confiante que uma revolução popular ocorreria e daria origem um sistema comunista que seria mais produtivo e muito mais humano.

Marx estava errado sobre o comunismo. Aquilo sobre o que ele estava profeticamente certo era a sua compreensão da revolução do capitalismo. Não era somente a instabilidade endêmica do capitalismo que ele compreendia, embora neste sentido ele fosse muito mais perspicaz do que a maioria dos economistas da sua época e da nossa.

Mais profundamente, Marx compreendeu como o capitalismo destrói a sua própria base social - o meio de vida da classe média. A terminologia marxista de burguês e proletário tem um tom arcaico.

Mas quando ele argumentava que o capitalismo iria arrastar as classes médias a algo parecido com a existência precária dos sobrecarregados trabalhadores de sua época, Marx previu uma mudança na maneira como vivemos à qual só agora estamos lutando para nos adaptarmos.

Ele via o capitalismo como o sistema econômico mais revolucionário da história, e não pode haver dúvida de que ele se diferencia daqueles que vieram antes dele.

Os caçadores e coletores persistiram nesta forma de vida por milhares de anos, enquanto as culturas escravagistas permaneceram assim por quase o mesmo tempo, e as sociedades feudais sobreviveram por muitos séculos. Em contraste, o capitalismo transforma tudo que ele toca.

Não são só as marcas que estão mudando constantemente. As empresas e as indústrias são criadas e destruídas em um fluxo incessante de inovação, enquanto as relações humanas são dissolvidas e reinventadas em novas formas.

O capitalismo foi descrito como um processo de destruição criativa, e ninguém pode negar que ele foi prodigiosamente produtivo. Praticamente qualquer um que esteja vivo na Grã-Bretanha hoje tem uma renda real maior do que eles teriam se o capitalismo nunca tivesse existido.

Retorno negativo

O problema é que entre as coisas que foram destruídas no processo está o estilo de vida do qual o capitalismo dependia no passado.

Defensores do capitalismo argumentam que ele oferece a todos os benefícios que, na época de Marx, eram desfrutados somente pela burguesia, a classe média estabelecida que possuía capital e tinha um razoável nível de segurança e liberdade em suas vidas.

No capitalismo do século XIX, a maioria das pessoas não tinha nada. Elas viviam de vender o seu trabalho, e quando os mercados entravam em queda, eles enfrentavam tempos difíceis. Mas à medida que o capitalismo evolui, seus defensores dizem, um número crescente de pessoas pode se beneficiar dele.

Carreiras bem-sucedidas não serão mais a prerrogativa de uns poucos. As pessoas não terão dificuldades todo mês para subsistir com base em um salário inseguro. Protegidos pelas economias, pela casa que possume e uma pensão decente, eles serão capazes de planejar suas vidas sem medo.

Com o crescimento da democracia e a distribuição da riqueza, ninguém precisará ser privado da vida burguesa. Todo mundo poderá ser da classe média.

Na verdade, na Grã-Bretanha, nos EUA e em muitos outros países desenvolvidos nos últimos 20 ou 30 anos, o contrário vem ocorrendo. A segurança do emprego não existe, as atividades e as profissões do passado em grande parte acabaram e as carreiras que duram uma vida inteira são meramente lembranças.

Se as pessoas têm qualquer riqueza, isto está nas suas casas, mas os preços dos imóveis nem sempre crescem. Quando o crédito fica restrito como agora, eles podem ficar estagnados por anos. Uma minoria cada vez menor pode contar com uma pensão com a qual pode viver confortavelmente, e não são muitos os que tem economias significativas.

Mais e mais pessoas vivem um dia de cada vez, com pouca noção do que o futuro pode reservar. AS pessoas da classe média costumavam imaginar as suas vidas desdobradas em uma progressão ordenada. Mas não é mais possível olhar para uma vida como uma sucessão de estágios em que cada um é um passo dado a partir do último.

No processo da destruição criativa, a escada foi afastada, e para um número cada vez maior de pessoas, uma existência de classe média não é mais sequer uma aspiração.

Assumindo riscos

Enquanto o capitalismo avançava, ele devolveu as pessoas a uma nova versão da existência precária do proletariado de Marx. As nossas rendas são muito maiores, e em algum grau nós estamos protegidos contra os choques por aquilo que resta do Estado de bem-estar social do pós-guerra.

Mas nós temos muito pouco controle efetivo sobre o curso das nossas vidas, e a incerteza na qual vivemos está sendo piorada pelas políticas voltadas para lidar com a crise financeira.

As taxas de juros a zero em meio a preços crescentes querem dizer que as pessoas estão tendo um retorno negativo de seu dinheiro, e ao longo do tempo o seu capital está se erodindo.

A situação de muitas das pessoas mais jovens é ainda pior. Para adquirir os talentos de que precisa, a pessoa tem de se endividar. Já que em algum ponto será necessário se reciclar, é preciso tentar economizar, mas se a pessoa está endividada desde o começo, esta é a última coisa que ela poderá fazer.

Não importa a sua idade, a perspectiva que a maioria das pessoas enfrenta é de uma vida de insegurança.

Ao mesmo tempo em que privou as pessoas da segurança da vida burguesa, o capitalismo criou o tipo de pessoa que vive a obsoleta vida burguesa. Nos anos 80, havia muita conversa sobre valores vitorianos, e propagandistas do livre mercado costumavam argumentar que ele traria de volta para nós os íntegros valores de outrora.

Para muitos, as mulheres e os pobres, por exemplo, estes valores vitorianos podem ser bastante ilógicos em seus efeitos. Mas o fato mais importante é que o livre mercado funciona para corroer as virtudes que mantêm a vida burguesa.

Quando as economias estão se perdendo, ser econômico pode ser o caminho para a ruína. É a pessoa que toma pesados empréstimos e não tem medo de declarar a insolvência que sobrevive e consegue prosperar.

Quando o mercado de trabalho está altamente volátil, não são aqueles que se mantém obedientemente fiéis a sua tarefa que são bem-sucedidos, e sim as pessoas que estão sempre prontas para tentar algo novo e que parece mais promissor.

Em uma sociedade que está sendo continuamente transformada pelas forças do mercado, os valores tradicionais são disfuncionais, e qualquer um que tentar viver com base neles está arriscado a acabar no ferro-velho.

Vasta riqueza

Olhando para um futuro no qual o mercado permeia cada canto da vida, Marx escreveu no 'Manifesto Comunista': "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Para alguém que vivia na Grã-Bretanha no início do período vitoriano - o Manifesto foi publicado em 1848 -, isto era uma observação incrivelmente perspicaz.

Naquela época, nada parecia mais sólido que a sociedade às margens daquela em que Marx vivia. Um século e meio depois, nos encontramos no mundo que ele previu, onde a vida de todo mundo é experimental e provisória, e a ruína súbita pode ocorrer a qualquer momento.

Uns poucos acumularam uma vasta riqueza, mas mesmo isso tem uma característica evanescente, quase espectral. Na época vitoriana, os muito ricos podiam relaxar, desde que eles fossem conservadores com a maneira como eles investiam seu dinheiro. Quando os heróis dos romances de Dickens finalmente recebem sua herança, eles nunca mais fazem nada na vida.

Hoje, não existe o porto seguro. As rotações do mercado são tais que ninguém pode saber o que terá valor dentro de alguns anos.

Este estado de inquietação perpétua é a revolução permanente do capitalismo, e eu acho que ele vai ficar conosco em qualquer futuro que seja realisticamente imaginável. Nós estamos apenas no meio do caminho de uma crise financeira que ainda deixará muitas coisas de cabeça para baixo.

As moedas e os governos provavelmente ficarão de ponta-cabeça, junto de partes do sistema financeiro que nós acreditávamos estar a salvo. Os riscos que ameaçavam congelar a economia mundial apenas três anos atrás não foram enfrentados. Eles foram simplesmente deslocados para os Estados.

Não importa o que políticos nos digam sobre a necessidade de controlar o déficit. Dívidas do tamanho das que foram contraídas não podem ser pagas. Elas quase que certamente serão infladas - um processo que está destinado a ser doloroso e empobrecedor para muitos.

O resultado só pode ser mais revoltas, em uma escala ainda maior. Mas isto não será o fim do mundo, ou mesmo do capitalismo. Aconteça o que acontecer, nós ainda teremos que aprender a viver com a energia mercurial que o mercado emitiu.

O capitalismo levou a uma revolução, mas não a que Marx esperava. O feroz pensador alemão odiava a vida burguesa e queria que o comunismo a destruísse. E assim como ele previu, o mundo burguês foi destruído.

Mas não foi o comunismo que conseguiu esta proeza. Foi o capitalismo que eliminou a burguesia.

Publicado pela BBC Brasil e reproduzida pelo Portal do jornal O Estado de S. Paulo, 18-09-2011.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

2 de setembro de 1988 - É aprovada a nova Constituição brasileira


"A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil". Ulysses Guimarães


Jornal do Brasil: 02 de setembro de1988
Depois de 578 dias de trabalho, incontáveis debates em subcomissões, comissões temáticas, Comissão de Sistematização e plenário, o estudo de 39 mil emendas e dois turnos de votação, a Constituinte encerrou nos primeiro minutos daquela sexta-feira a sua tarefa. Foi aprovada a nova Constituição brasileira. Na sessão de encerramento, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, discursou destacando o seu caráter de Constituição Cidadã, e enfatisando a importância da participação popular em sua elaboração.

Entre suas principais definições, manteve o governo presidencial, garantindo que fossem eleitos pelo povo, por voto direto e secreto, o Presidente da República, os Governadores dos Estados, os Prefeitos Municipais e os representantes do poder legislativo. Instituiu o voto facultativo para cidadãos com 16 ou 17 anos. Redefiniu a divisão administrativa do país que, com a criação do estado de Tocantins, passou a ter 26 estados federados e um distrito federal. Proibiu a comercialização de sangue e seus derivados. Aboliu a censura nos rádios, TV, teatros, jornais, etc.

Sua promulgação foi no dia 5 de outubro, e vigora até hoje.

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Fonte: Jornal do Brasil