segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

COMEÇAMOS A SAIR DA INDIGÊNCIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Foto: Ricardo Chicarelli

Filósofo e educador se diz otimista com o futuro, mas avisa: não basta maior acesso ao ensino, é preciso que os alunos permaneçam e isso 'seja relevante para a vida coletiva'


Mario Sergio Cortella escreve livros, faz comentários em rádio e TV e dá pelo menos 60 palestras por mês. Mas garante: sua vida "não é corrida, é organizada". Antigamente, compara, dava aula de manhã, à tarde e à noite. Filósofo, educador e escritor, ele tem uma bagagem que vai além da sala de aula: foi também secretário municipal da Educação da gestão da Luiza Erundina. Nesta entrevista a Marina Gama Cubas, ele volta o olhar para os últimos 30 anos - um período em que o Brasil "começou a sair da indigência na área da educação escolar" e constata "uma ruptura para melhor". Mede a temperatura da geração que foi às ruas reivindicar seus sonhos, conclui que há muito o que fazer, mas sua mensagem é a de um otimista, inclusive quando o assunto é ética: "Somos um País na adolescência, caminhando para a maturidade". A seguir, os principais trechos da entrevista.


O Brasil tem conseguido avançar na direção de ser a pátria educadora?
Bastante. O lema adotado veio num momento perturbado, de restrições orçamentárias, mas deveria ser colocado como um projeto de nação. O Brasil, nos últimos 30 anos, começou a sair da indigência na área da educação escolar. Seja nos governos de FHC, de Lula, no primeiro mandato da Dilma ou agora. Evidentemente isso não nos acalma. Apenas traz a certeza de que é possível fazê-lo.


O que chama de indigência na educação?
Durante séculos tivemos um nível de exclusão na educação básica muito forte, além de um nível de analfabetismo adulto que ainda é vergonhoso, mas que saiu dos patamares de tempos anteriores. Havia ainda um ensino superior restrito a uma camada menor da população sob o argumento de que isso resultaria em maior qualidade - o que, numa democracia, é um argumento inaceitável. Se você não tem quantidade total, não tem qualidade, tem privilégio. Nesse sentido, há uma ruptura nos últimos 30 anos, para melhor. Além disso, o Brasil não tinha quase instrumentos de avaliação das suas estruturas educacionais. As ferramentas de hoje permitem uma visão mais nítida do que estamos fazendo. E também, claro, a Constituição de 1988 alterou a distribuição de recursos e aumentou a possibilidade de sustentação da educação municipal. Mas, repetindo Churchill, estamos no fim do começo. Não no começo do fim.


Qual o grande problema da educação brasileira hoje?
Temos três grandes problemas. Um deles é a democratização não só do acesso, mas também da permanência. Não basta colocar crianças na escola em larga escala, é preciso que elas permaneçam e tenham uma educação que seja relevante para a vida coletiva. Não só com capacitação técnica, mas com base de cidadania. Em segundo lugar, precisamos de uma nova qualidade de ensino, com uma estrutura mais voltada para o século 21. Costumo brincar que temos um choque intersecular na estrutura educacional. Os alunos são do século 21. Nós, professores, somos do século 20. E as metodologias e a organização são do século 19. E essa necessidade de atualização exige uma formação mais continuada da parte docente. O que significa, também, ter maiores recursos.


Como viu a ocupação de escolas por estudantes no final do ano passado?

Um movimento belíssimo no sentido pedagógico, porque acabou fazendo com que se desse uma atenção maior para a questão que era decisiva na vida das famílias e das comunidades: a da reestruturação escolar. Ela mostrou do que um grupo de jovens, que não teve como referência de ação política uma estrutura ditatorial, é capaz quando pode atuar em um contexto democrático e para aquilo que considera correto. Houve um equívoco, no primeiro momento, de chamar a atitude dos estudantes de invasão. Quando o espaço é público, se tem uma ocupação. E essa ocupação se dá em nome das ideias defendidas. Essa ação pode se transformar em um esforço coletivo para que tanto a autoridade docente como os estudantes surfem em outras ondas - as necessárias para que a educação não seja menos relevante do que deve ser.


Pesquisa do Data Popular mostra que apenas 3% dos brasileiros afirmam ser corruptos, mas que 70% admitem ter tomado pelo menos uma vez na vida uma atitude corrupta. Uma ação torna alguém corrupto?
Nenhum e nenhuma de nós é imune à degradação ética. Nenhum e nenhuma de nós é invulnerável. Por exemplo, se eu considerar um ato corrupto eu ter colado na prova, ou ter tentado passar à frente de alguém na fila. Esses atos do cotidiano, se reiterados, caminharão em direção a uma corrupção mais extensa. Esses delitos nossos, que individualmente ou isoladamente têm uma ressonância menor, se tornados hábitos agregam uma negatividade. O fato de se poder dizer que nenhum de nós é imune, no entanto, não significa que isso seja obrigatório. Como costumo dizer sempre, a corrupção é uma possibilidade, não é uma obrigatoriedade. Apenas 3% admitirem isso é um índice que eu olharia como reduzido se imaginarmos o quanto somos, de fato, capazes de qualificar a corrupção de vários modos.


As pessoas não conseguem ver a corrupção nos próprios atos?
Não conseguimos. Temos uma coisa chamada consciência que trabalha muito fortemente o que chamamos de "ética da conveniência". Ela ocorre em vários casos. Por exemplo, quando a pessoa diz "eu faço, mas todo mundo faz". Ou: "se não for assim, eu não vou conseguir". A ética da conveniência é malévola porque degrada a nossa condição, mas não é privativa da brasilidade. Precisamos ter cautela ao falar em ética para não esquecer que ética não é cosmética, uma coisa de fachada. Vamos a um exemplo. No parâmetro em relação à corrupção do mundo, que saiu há algumas semanas, um dos países menos corruptos, em nível de governo, é a Suíça. Mas é um dos países que mais acolhem dinheiro corrupto do mundo. É necessário ter cautela com essa hipocrisia. Ao mesmo tempo, temos um aprendizado de conduta em relação ao nosso modo de vida privado e público. Isso significa que há uma construção histórica em relação aos nossos direitos e deveres. Por que somos hoje mais propensos a desejar a honestidade? Porque temos uma imprensa livre que pode tornar público aquilo que é necessário. Também porque temos tecnologia digital que nos coloca em estado de vigilância mais contínua. E porque uma parte de nós já entendeu que a fratura ética leva à derrota coletiva.


Acha que o Brasil vai sair melhor da Lava Jato?
Cada vez mais. Há todo um ambiente, hoje, que é mais favorável a que a gente fique mais atento em relação às condutas privada e pública. Se nós formos os mesmos daqui a 10 anos, isso será um sinal de que a nossa canalhice é superior à nossa decência, e não acredito que assim seja.


Você diz que a democracia é aceitação coletiva das regras.  A coletividade, então, pode quebrar essas regras?
Nas democracias há o direito de insubordinação civil, que é a recusa da população ou de parte dela a algo que considere inadequado, injusto ou violento. O filósofo John Locke, no Tratado sobre o Governo Civil, fala do equilíbrio entre os poderes, e esse elemento é um dos que influenciaram a independência dos Estados Unidos e a Constituição brasileira de 1988. A Constituição não está além da própria vida em comunidade.


Os atos nas ruas mostraram também manifestações de intolerância. Como vê isso?

Há aí algo que Vladimir Lênin chamava de teoria da curvatura da vara. É uma ideia fácil de entender: após você pegar uma vareta que está fincada no chão e envergá-la fortemente numa direção, ao soltá-la ela vai fortemente na direção oposta. As manifestações dos últimos tempos permitiram que viessem à tona não só pensamentos contrários e divergentes, mas também as doenças. Isto é, as doenças mentais, principalmente a da intolerância, que é sinônimo de covardia e de incapacidade de ouvir aquilo que não pensa.


Estamos mais intolerantes?
É maior, hoje, a possibilidade de aclarar a intolerância. As pessoas têm muito maior condição de ser intolerantes e repartir esse comportamento. Não tínhamos, até algum tempo, qualquer plataforma em que eu pudesse manifestar isso, exceto individualmente. Em segundo lugar, eu nem poderia fazê-lo porque seria imediatamente submetido à pressão de alguém mais poderoso. Em terceiro, a violência no mundo é muito mais reduzida, comparada ao que já foi. Nós temos hoje capacidade maior de produzir violência, mas a rejeição a ela é maior.


Você se considera um realista ou um otimista?
Eu acho que todo o otimista é um realista compromissado. O pessimista é acima de tudo um desistente, que se senta e espera dar errado. O otimista tem muito mais trabalho porque precisa ir atrás. Prefiro ser otimista.

Fonte: Estadão

Por uma corajosa conversão pastoral


“Nós, pastores, precisamos de vencer a tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é familiar no seu rosto, que a proximidade e a condescendência podem fazer mais do que a força”, instou o Papa Francisco no pronunciamento feito aos bispos mexicanos, no dia 13-02-2016.
Segundo o Papa Francisco, “só uma Igreja que saiba proteger o rosto dos homens que vêm bater à sua porta, será capaz de lhes falar de Deus. Se não decifrarmos os seus sofrimentos, se não nos dermos conta das suas necessidades, nada poderemos oferecer. A riqueza de que dispomos flui somente quando encontramos a pequenez daqueles que mendigam, encontro esse que se realiza, precisamente, no nosso coração de pastores”.
E o Papa continua:
"Sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência; a Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos» dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25)".
E de improviso, disse:
"Se é preciso brigar, briguem; se devem dizer as coisas, digam-las, mas como homens, na cara, e como homens de Deus; se passarem do limite, peçam perdão, mas mantenham a unidade do corpo episcopal".Quanto ao narcotráfico, pediu que os bispos não subestimem "o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja".
Segundo Francisco, "a amplitude do fenômeno (do narcotráfico), a complexidade das suas causas, a imensidade da sua extensão como metástase devoradora, a gravidade da violência que desagrega e suas conexões transtornadas não consentem que nós, pastores da Igreja, nos refugiemos em condenações genéricas, mas exigem uma coragem profética e um projeto pastoral sério e qualificado para contribuir, gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos, desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa".
O Papa pediu aos bispos a capacidade "de imitar a liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio subtil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para o mudar".
E continuou:
"Peço-vos um olhar de singular delicadeza para os povos indígenas e as suas fascinantes e não raro massacradas culturas. O México tem necessidade das suas raízes ameríndias, para não ficar um enigma sem solução. Os indígenas do México esperam ainda que se lhes reconheça, efetivamente, a riqueza da sua contribuição e a fecundidade da sua presença para herdar aquela identidade que vos torna uma nação única, e não apenas uma entre outras"
E em longos parágrafos, lembrou dos migrantes:
"Que os vossos corações sejam capazes de seguir os migrantes e alcançar além das fronteiras".
E admoestou:
"Não será vã a solicitude das vossas dioceses ao derramar o pouco bálsamo que possuem nos pés feridos de quantos atravessam os seus territórios e gastar em favor deles o dinheiro duramente arrecadado; no fim, o divino Samaritano enriquecerá a quem não passou indiferente por Ele quando estava caído na estrada (Lc 10, 25-37)".
E ao final pediu que os bispos não caiam "na estagnação de dar velhas respostas às novas questões".
E concluiu:
"Lembrai-vos de que a Esposa sabe bem que o Pastor amado (Ct 1, 7) Se encontra apenas onde as pastagens são verdejantes e os ribeiros cristalinos. A Esposa desconfia dos companheiros do Esposo que, às vezes por descuido ou incapacidade, conduzem o rebanho para lugares áridos e cheios de pedregulhos. Ai de nós, pastores, companheiros do Supremo Pastor, se deixarmos vagar a sua Esposa, porque, na tenda por nós construída, não se encontra o Esposo".
Eis o pronunciamento.
Estou feliz por vos poder encontrar no dia seguinte ao da minha chegada a este amado país, que também eu, seguindo os passos dos meus Predecessores, vim visitar.
Não podia deixar de vir! Poderia o Sucessor de Pedro, chamado do profundo sul latino-americano, privar-se da possibilidade de pousar o olhar na «Virgem Morenita»?
Agradeço-vos por me terdes recebido nesta Catedral – a «casita», um pouco alongada mas sempre «sagrada», que pediu a Virgem de Guadalupe – e pelas amáveis palavras de boas-vindas que me dirigistes.
Sabendo que aqui se encontra o coração secreto de cada mexicano, entro com passo delicado, como se deve entrar na casa e na alma deste povo, sentindo-me profundamente grato por me abrir a porta. Sei que, fixando os olhos da Virgem, alcanço o olhar do seu povo, que aprendeu a mostrar-se n’Ela. Sei que nenhuma outra voz pode falar tão profundamente do coração mexicano, como me pode falar a Virgem; Ela guarda os seus mais nobres desejos e as esperanças mais recônditas; recolhe as suas alegrias e lágrimas; Ela compreende os seus numerosos idiomas e responde-lhes com ternura de Mãe, porque são os seus filhos.
Estou feliz por estar convosco aqui, nas proximidades da «Colina de Tepeyac», como nos alvores da evangelização deste continente e, por favor, permiti-me que, tudo quanto vos disser, possa fazê-lo partindo da Guadalupana. Como quereria que fosse Ela mesma a levar, até às profundezas das vossas almas de pastores e – por vosso intermédio – a cada uma das vossas Igrejas particulares presentes neste vasto México, tudo o que intensamente brota do coração do Papa!
Como sucedeu com São Juan Diego e as sucessivas gerações dos filhos da Guadalupana, também o Papa, há tempos, cultivava o desejo de olhar para Ela. Mais ainda, queria eu mesmo ser envolvido pelo seu olhar materno. Refleti muito sobre o mistério deste olhar e peço-vos que acolhais tudo o que brota do meu coração de Pastor neste momento.
Um olhar de ternura
Antes de mais nada, a «Virgem Morenita» ensina-nos que a única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus. Aquilo que encanta e atrai, aquilo que abranda e vence, aquilo que abre e liberta das cadeias não é a força dos meios nem a dureza da lei, mas a fragilidade omnipotente do amor divino, que é a força irresistível da sua doçura e a promessa irreversível da sua misericórdia.
Um inquieto e ilustre escritor desta terra, Octávio Paz, disse que, em Guadalupe, não se pede a abundância das colheitas nem a fertilidade da terra, mas procura-se um regaço no qual os homens, sempre órfãos e deserdados, buscam um abrigo, um lar.
Passados séculos do evento fundador deste país e da evangelização do continente, porventura se diluiu ou está esquecida a necessidade dum regaço por que anseia o coração do povo que vos está confiado?
Conheço a longa e dolorosa história que atravessastes, não sem o derramamento de muito sangue, não sem convulsões impiedosas e dilacerantes, não sem violência e incompreensões. Com razão, o meu venerado e santo Predecessor, que se sentia no México como em sua casa, quis lembrar que a vossa história «é percorrida, como rios às vezes ocultos e sempre caudalosos, por três realidades que ora se encontram, ora revelam as suas diferenças complementares, sem jamais se confundirem totalmente: a antiga e rica sensibilidade dos povos indígenas que amaram Juan de Zumárraga e Vasco de Quiroga, aos quais muitos desses povos continuam a chamar pais; o cristianismo arraigado na alma dos mexicanos; e a moderna racionalidade, de perfil europeu, que tanto quis enaltecer a independência e a liberdade» (João Paulo II, Discurso na cerimónia de chegada ao México, 22 de Janeiro de 1999).
E nesta história, nunca se mostrou infecundo o regaço materno que tem gerado continuamente o México, embora às vezes se parecesse com aquela rede quase a romper-se que continha cento e cinquenta e três peixes (Jo 21, 11), mas as fraturas ameaçadoras sempre se recompuseram.
Por isso, convido-vos a começar de novo desta necessidade de um regaço que emana da alma do vosso povo. O regaço da fé cristã é capaz de reconciliar o passado marcado muitas vezes por solidão, isolamento e marginalização, com o futuro continuamente relegado para um amanhã que escapa. Apenas naquele regaço é possível, sem renunciar à própria identidade, «descobrir a verdade profunda da nova humanidade, em que todos são chamados a ser filhos de Deus» (João Paulo II, Homilia na canonização de São Juan Diego, 31 de Julho de 2002).
Inclinai-vos, com delicadeza e respeito, sobre a alma profunda do vosso povo, debruçai-vos com atenção e decifrai o seu rosto misterioso. Porventura o presente, muitas vezes dissolvido em dispersões e festas, não é prenúncio de Deus que é o único e pleno presente? Porventura a familiaridade com a dor e a morte não são formas de coragem e caminhos rumo à esperança? Porventura a percepção de que o mundo esteja necessitado sempre e somente de redenção não será um antídoto à auto-suficiência arrogante de quantos julgam possível poder prescindir de Deus?
Naturalmente, para tudo isto é necessário um olhar capaz de refletir a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência; a Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos» dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).
O mundo, onde o Senhor nos chama a exercer a nossa missão, tornou-se muito complexo. À prepotente ideia do «cogito», que pelo menos não negava que houvesse uma rocha acima da areia do ser, sobrepôs-se hoje uma concepção da vida – no dizer de muitos – mais vacilante, vaga e caótica do que nunca, porque carece de um substrato sólido.
As fronteiras, tão intensamente exigidas e sustentadas, tornaram-se permeáveis à novidade dum mundo em que a força de alguns já não pode sobreviver sem a vulnerabilidade dos outros. A hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
E, precisamente neste mundo, Deus pede-vos para ter um olhar capaz de interceptar a pergunta que grita no coração do vosso povo, o único que, no próprio calendário, possui uma «festa do grito». Àquele grito, é preciso responder que Deus existe e, graças a Jesus, está perto; responder que só Deus é a realidade sobre a qual se pode construir, porque «Deus é a realidade fundante, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas o Deus com um rosto humano» (Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferência Geral do CELAM, 13 de Maio de 2007).
Nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor» (cf. Jo 20, 25), de quem esteve com Deus. Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projetos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios.
Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus, basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes.
Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós (Mt 20, 20-28). Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do Pai? Fora das «coisas do Pai» (Lc 2, 48-49), perdemos a nossa identidade e, culpavelmente, tornamos vã a sua graça.
Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.
Penso na necessidade de oferecer um regaço materno aos jovens. Que os vossos olhares sejam capazes de se cruzar com o deles, de os amar e individuar o que eles buscam com aquela força com que muitos como eles deixaram barcos e redes na praia do mar (Mc 1, 17-18), abandonaram bancas de extorsão para seguir o Senhor da verdadeira riqueza (Mt 9, 9).
Em particular preocupam-me tantos jovens que, seduzidos pelo poder vazio do mundo, exaltam as quimeras e revestem-se dos seus símbolos macabros para comercializar a morte em troca de moedas que, no fim, a ferrugem corrói e os ladrões arrombam os muros para as roubar (Mt 6, 19).
Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.
A amplitude do fenômeno, a complexidade das suas causas, a imensidade da sua extensão como metástase devoradora, a gravidade da violência que desagrega e suas conexões transtornadas não consentem que nós, pastores da Igreja, nos refugiemos em condenações genéricas, mas exigem uma coragem profética e um projeto pastoral sério e qualificado para contribuir, gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos, desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa.
Só começando das famílias; aproximando-nos e abraçando a periferia humana e existencial das áreas desoladas das nossas cidades; envolvendo as comunidades paroquiais, as escolas, as instituições comunitárias, a comunidade política, as estruturas de segurança; só assim será possível libertar-se totalmente das águas onde, infelizmente, se afogam tantas vidas, seja a de quem morre como vítima, seja a de quem diante de Deus terá as mãos sempre manchadas de sangue, mesmo que tenha os bolsos cheios de dinheiro sórdido e a consciência anestesiada.
Um olhar capaz de tecer
No manto da alma mexicana, Deus teceu, com o fio dos traços mestiços do seu povo, o rosto da sua manifestação na «Morenita». Deus não precisa de cores perecíveis para desenhar o seu rosto. Os desenhos de Deus não são condicionados pelas cores e os fios, mas determinados pela irreversibilidade do seu amor que quer tenazmente imprimir-se em nós.
Por isso, sede bispos capazes de imitar esta liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio subtil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para o mudar.
Redescobri, depois, a constância sábia e humilde com que os Pais da fé desta Pátria souberam introduzir as gerações sucessivas na semântica do mistério divino. Primeiro aprendendo e, em seguida, ensinando a gramática necessária para dialogar com Deus, escondido nos séculos da sua busca e tornado próximo na pessoa do seu Filho Jesus, que hoje muitos reconhecem, na sua imagem ensanguentada e humilhada, como figura do próprio destino. Imitai a sua condescendência e capacidade de abaixar-Se; nunca compreenderemos suficientemente o fato de Deus ter tecido, com os fios mestiços do nosso povo, o rosto com que Se deu a conhecer! Nunca Lhe agradeceremos bastante...
Peço-vos um olhar de singular delicadeza para os povos indígenas e as suas fascinantes e não raro massacradas culturas. O México tem necessidade das suas raízes ameríndias, para não ficar um enigma sem solução. Os indígenas do México esperam ainda que se lhes reconheça, efetivamente, a riqueza da sua contribuição e a fecundidade da sua presença para herdar aquela identidade que vos torna uma nação única, e não apenas uma entre outras.
Muitas vezes se falou do presunto destino por cumprir desta nação, do «labirinto da solidão» em que estaria prisioneira, da geografia como destino que a enreda. Segundo alguns, tudo isto seria obstáculo para o desenho dum rosto unitário, duma identidade adulta, duma posição singular no concerto das nações e duma missão compartilhada.
Segundo outros, a própria Igreja no México estaria condenada a escolher entre sofrer a inferioridade para onde foi relegada nalguns períodos da sua história, como quando a sua voz foi silenciada e procurou-se suprimir a sua presença, ou aventurar-se nos fundamentalismos para recuperar certezas provisórias, esquecendo-se que tem inscrita no coração a sede do Absoluto e está chamada, em Cristo, a congregar todos e não apenas uma parte (cf. Lumen gentium 1, 1).
Em vez disso, não vos canseis de lembrar ao vosso povo como são fortes as raízes antigas que permitiram a viva síntese cristã de comunhão humana, cultural e espiritual que aqui se forjou. Recordai que as asas do vosso povo já planaram várias vezes por cima de não poucas vicissitudes. Guardai a memória do longo caminho percorrido até agora e sabei suscitar a esperança de novas metas, porque o amanhã será uma terra «rica de frutos» embora nos coloque desafios não indiferentes (Nm 13, 27-28).
Que os vossos olhares, fixos sempre e apenas em Cristo, sejam capazes de contribuir para a unidade do vosso povo; favorecer a reconciliação das suas diferenças e a integração das suas diversidades; promover a solução dos seus problemas endógenos; lembrar a medida alta que o México pode alcançar, se aprender a pertencer-se a si mesmo antes que aos outros; ajudar a encontrar soluções compartilhadas e sustentáveis para as suas misérias; motivar a nação inteira para não se contentar com menos de quanto se espera do modo mexicano de habitar o mundo.
Um olhar atento e solidário, não adormecido
Peço-vos para não cairdes na estagnação de dar velhas respostas às novas questões. O vosso passado é um poço de riquezas por escavar, que pode inspirar o presente e iluminar o futuro. Ai de vós se vos deixais adormentar sobre os louros! É preciso não desperdiçar a herança recebida, guardando-a com um trabalho constante. Estais sentados aos ombros de gigantes: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos fiéis «até ao fim», que deram a vida para a Igreja poder cumprir a sua missão. Do alto de tal pódio, sois chamados a alongar o olhar sobre o campo do Senhor para programar a sementeira e esperar a colheita.
Convido-vos a trabalhar sem medo na tarefa de evangelizar e aprofundar a fé, por meio duma catequese mistagógica que saiba valorizar a religiosidade popular da vossa gente. O nosso tempo exige atenção pastoral às pessoas e grupos que esperam poder encontrar-se com Cristo vivo. Só uma corajosa conversão pastoral das nossas comunidades pode procurar, gerar e nutrir os atuais discípulos de Jesus (cf. Documento de Aparecida, 226; 368; 370).
Por isso nós, pastores, precisamos de vencer a tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é familiar no seu rosto, que a proximidade e a condescendência podem fazer mais do que a força.
Como ensina a bela tradição guadalupana, a «Morenita» guarda os olhares daqueles que A contemplam, reflete o rosto daqueles que A encontram. É necessário aprender que há algo de irrepetível em cada pessoa que olha para nós à procura de Deus. Compete-nos a nós tornar-nos permeáveis a tais olhares: guardar em nós cada um deles, conservá-los no coração, protegê-los.
Só uma Igreja que saiba proteger o rosto dos homens que vêm bater à sua porta, será capaz de lhes falar de Deus. Se não decifrarmos os seus sofrimentos, se não nos dermos conta das suas necessidades, nada poderemos oferecer. A riqueza de que dispomos flui somente quando encontramos a pequenez daqueles que mendigam, encontro esse que se realiza, precisamente, no nosso coração de pastores.
Peço-vos que o primeiro rosto a guardar no vosso coração seja o dos vossos sacerdotes. Não os deixeis expostos à solidão e ao abandono, como presa do mundanismo que devora o coração. Estai atentos e aprendei a ler os seus olhares, para vos alegrardes com eles quando se sentem felizes contando tudo o que «fizeram e ensinaram» (Mc 6, 30), e para não os abandonardes quando se sentem um pouco desanimados, só conseguindo chorar porque «negaram o Senhor» (Lc 22, 61-62), e também para os apoiardes, em comunhão com Cristo, quando algum, abatido, sair com Judas «na noite» (Jo 13, 30). Nestas situações, nunca falte a vossa paternidade de bispos para com os vossos sacerdotes. Encorajai a comunhão entre eles; fazei com que possam aperfeiçoar os seus dons; inseri-os nas grandes causas, porque o coração do apóstolo não foi feito para coisas pequenas.
A necessidade de familiaridade habita no coração de Deus. Assim Nossa Senhora de Guadalupe pede apenas uma «casita sagrada». Os nossos povos latino-americanos apreciam os diminutivos na linguagem e usam-nos de bom grado. Talvez necessitem de diminutivos porque, doutra forma, sentir-se-iam perdidos. Adaptaram-se a sentir-se pequeninos e acostumaram-se a viver na modéstia.
A Igreja, mesmo quando se reúne numa majestosa catedral, não poderá deixar de considerar-se como uma «casita» onde os seus filhos se sintam à vontade. Diante de Deus, pode-se permanecer apenas se se é pequeno, se se é órfão, se se é mendicante.
«Casita» familiar e, ao mesmo tempo, «sagrada», porque a proximidade se enche da grandeza omnipotente. Somos guardiões deste mistério. Às vezes perdemos este sentido da medida divina humilde e cansamo-nos de oferecer ao nosso povo a «casita», onde possa sentir-se em intimidade com Deus. Pode acontecer também que, tendo descuidado um pouco o sentido da sua grandeza, se perdeu em parte o temor reverencial para com tal amor. Onde habita Deus, o homem não pode aceder sem ter sido admitido e sem antes «tirar as sandálias dos pés» (Ex 3, 5) confessando assim a própria insuficiência.
O fato de nos termos esquecido de «tirar as sandálias» para entrar não estará porventura na raiz da perda do sentido da sacralidade da vida humana, da pessoa, dos valores essenciais, da sabedoria acumulada ao longo dos séculos, do respeito pela natureza? Sem recuperar, na consciência dos homens e da sociedade, estas raízes profundas, até ao generoso empenho em prol dos legítimos direitos humanos faltará a seiva vital que só pode vir dum manancial que a humanidade não poderá jamais dar-se por si mesma.
Um olhar de conjunto e de unidade
Só olhando a «Morenita» é que o México tem uma visão completa de si mesmo. Por isso convido-vos a compreender que a missão que a Igreja vos confia exige este olhar que abrace a totalidade. E isto não se pode realizar isoladamente, mas só em comunhão.
cintura da Guadalupana anuncia a sua fecundidade. É a Virgem que traz, no ventre, o Filho esperado pelos homens. É a Mãe que já tem em gestação a humanidade do novo mundo que nasce. É a Esposa que prefigura a maternidade fecunda da Igreja de Cristo. Vós tendes a missão de cingir a nação mexicana inteira com a fecundidade de Deus. Nenhum pedaço desta cintura pode ser desprezado.
O episcopado mexicano realizou passos notáveis nestes anos conciliares; aumentaram os seus membros; promoveu-se uma contínua e qualificada formação permanente; não faltou o ambiente fraterno; cresceu o espírito de colegialidade; as intervenções pastorais influíram sobre as vossas Igrejas e sobre a consciência nacional; as atividades pastorais compartilhadas revelaram-se frutuosas em áreas essenciais da missão eclesial como a família, as vocações, a presença social.
Ao mesmo tempo que nos alegramos com o caminho destes anos, peço-vos que não vos deixeis desanimar com as dificuldades nem poupeis qualquer esforço possível para promover, entre vós e nas vossas dioceses, o zelo missionário, especialmente a favor das partes mais necessitadas do único corpo da Igreja mexicana.
Redescobrir que a Igreja é missão constitui um elemento fundamental para o seu futuro, porque só o entusiasmo, a admiração convicta dos evangelizadores tem a força de arrastar. Por isso, peço-vos que cuideis de maneira especial da formação e preparação dos leigossuperando toda a forma de clericalismo e envolvendo-os ativamente na missão da Igreja, principalmente tornando presente, com o testemunho da própria vida, o Evangelho de Cristo no mundo.
Muito ajudaria a este povo mexicano um testemunho unificante da síntese cristã e uma visão compartilhada da identidade e destino dele. Neste sentido, será muito importante que a Pontifícia Universidade do México esteja cada vez mais presente no coração dos esforços eclesiais para garantir aquele olhar de universalidade sem o qual a razão, resignada com modelos parciais, renuncia à sua mais alta aspiração de buscar a verdade.
A missão é vasta, e levá-la por diante requer uma multiplicidade de caminhos. Exorto-vos, com a mais viva insistência, a conservar a comunhão e a unidade entre vós. A comunhão é a forma vital da Igreja, e a unidade dos seus pastores dá prova da sua veracidade. O México e a sua vasta e multiforme Igreja têm necessidade de bispos servidores e guardiães da unidade construída sobre a Palavra do Senhor, alimentada com o seu Corpo e guiada pelo seu Espírito que é o alento vital da Igreja.
Não há necessidade de «príncipes», mas duma comunidade de testemunhas do Senhor. Cristo é a sua única luz; é a fonte da água viva; da sua respiração, sai o Espírito que estende as velas da barca eclesial. Em Cristo glorificado, que os membros deste povo gostam de honrar como Rei, acendei juntos a luz, enchei-vos da sua presença que não Se extingue; respirai a plenos pulmões o ar bom do seu Espírito. Compete-vos semear Cristo no território, manter acesa a sua luz humilde que ilumina sem ofuscar, garantir que nas suas águas se sacie a sede do vosso povo; levantar as velas de modo que o sopro do Espírito as impulsione e não encalhe a barca da Igreja no México.
Lembrai-vos de que a Esposa sabe bem que o Pastor amado (Ct 1, 7) Se encontra apenas onde as pastagens são verdejantes e os ribeiros cristalinos. A Esposa desconfia dos companheiros do Esposo que, às vezes por descuido ou incapacidade, conduzem o rebanho para lugares áridos e cheios de pedregulhos.
Ai de nós, pastores, companheiros do Supremo Pastor, se deixarmos vagar a sua Esposa, porque, na tenda por nós construída, não se encontra o Esposo.
Permiti-me uma última palavra para expressar o apreço do Papa por tudo o que tendes feito para enfrentar o desafio deste nosso tempo que são as migrações. Hoje, são milhões os filhos da Igreja que vivem na diáspora ou em trânsito peregrinando para o norte à procura de novas oportunidades. Muitos deles deixam para trás as suas raízes para se aventurar, mesmo na clandestinidade que envolve todo o tipo de riscos, em busca da «luz verde» que olham como a sua esperança. Muitas famílias se dividem; e nem sempre a integração na alegada «terra prometida» é tão fácil como se pensa.
Irmãos, que os vossos corações sejam capazes de os seguir e alcançar além das fronteiras. Reforçai a comunhão com os vossos irmãos do episcopado estadunidense, para que a presença materna da Igreja mantenha viva as raízes da sua fé, as razões da sua esperança e a força da sua caridade. Para não acontecer que, pendurando as suas cítaras, emudeçam as suas alegrias, esquecendo-se de Jerusalém e transformando-se em «exilados de si mesmos» (Salmo 136). Juntos, testemunhai que a Igreja é guardiã duma visão unitária do homem e não pode aceitar que seja reduzido a mero «recurso humano».
Não será vã a solicitude das vossas dioceses ao derramar o pouco bálsamo que possuem nos pés feridos de quantos atravessam os seus territórios e gastar em favor deles o dinheiro duramente arrecadado; no fim, o divino Samaritano enriquecerá a quem não passou indiferente por Ele quando estava caído na estrada (Lc 10, 25-37).
Queridos irmãos, o Papa tem a certeza de que o México e a sua Igreja chegarão a tempo ao encontro consigo mesmo, com a história, com Deus. Talvez alguma pedra no caminho atrase a marcha, e o cansaço da viagem exigirá alguma pausa, mas nunca será suficiente para vos fazer perder a meta. Na verdade, poderá chegar tarde quem tem uma Mãe à sua espera? Quem pode ouvir continuamente ressoar no próprio coração: «Não estou aqui Eu, que sou tua Mãe?»
Nota da IHU On-Line:
A íntegra do discurso do Papa Francisco aos bispos mexicanos, em espanhol, pode ser visto e ouvido aqui.

Fonte: UNISINOS

Aprender com o índio, não tentar destruí-lo


"Um índio na força de sua cultura também não depende de ninguém: sabe fazer tudo de que precisa – a casa, a roça, seus objetos do cotidiano. E a informação é aberta, o que um sabe todos podem saber; como todos são autossuficientes, ninguém domina ninguém", escreve Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 12-02-2016.
Segundo ele, "as perdas com a condenação dos idiomas nativos podem ser muito graves, principalmente neste momento em que costuma ter consequências danosas o banimento das 160 linguagens nativas ainda faladas por aqui. Só um exemplo: o povo matsés, da fronteira Brasil-Peru, criou uma enciclopédia com mais de 500 páginas, com a descrição, em seu idioma, de cada doença encontrada entre eles, com o relato de causas, forma de enfrentá-las, onde encontrar os medicamentos das espécies naturais, foto de cada uma. Tudo compilado por cinco xamãs. E só a linguagem local seria capaz de identificar as particularidades do lugar e das espécies, pois os xamãs são os depositários maiores do conhecimento em cada etnia. O uso da linguagem nativa impediria também a apropriação dos conhecimentos por empresas da área farmacêutica".
Eis o artigo.
Está muito difícil ser índio no Brasil. São cada vez mais fortes e frequentes os ataques à sua cultura, às terras que ocupam, à convivência com os “brancos”. As perdas são muitas. Embora de outra natureza e inevitável, há poucos dias sobreveio a morte do professor Roberto Baruzzi, da Universidade Federal (Escola Paulista de Medicina) em São Paulo e idealizador do Projeto Xingu, que tantos benefícios trouxe às etnias dessa região em muitas décadas.
Interessado nas notícias sobre esse caminho, o autor destas linhas foi pela primeira vez ao Parque do Xingu ainda na década de 1970. E pôde verificar que nos grupos étnicos dali não havia casos de doenças coronarianas, por não estarem presentes entre eles os chamados fatores de risco, frequentes em nossa vida urbanizada, como estresse, obesidade, diabetes, sedentarismo, hipertensão, fatores genéticos, simultâneos com alcoolismo, tabagismo. Confrontados com grupos já urbanizados – guarani, caingangue e terena, boa parte deles trabalhando como boias-frias –, verificava-se que era muito forte a presença entre estes últimos de altas taxas de doenças coronarianas e hipertensão, simultaneamente com o tabagismo e o alcoolismo, alimentação inadequada e estresse.
A intenção do projeto do professor Baruzzi era criar condições para a manutenção da saúde privilegiada entre os grupos do Xingu, incluído o uso de medicamentos da natureza próxima. Para isso, a cada ano os participantes do projeto iam ao parque e checavam o estado de saúde de cada índio. As informações eram levadas para fichas individuais e confrontadas com as de anos anteriores; se necessário, tomavam-se providências. Que programas de saúde entre nós chegam a esses procedimentos? Mas a aculturação forçada de índios em todo o País chegou também à proximidade com as etnias do Xingu – e o quadro de hoje é muito diferente.
As consequências do projeto de aculturação forçada dos grupos étnicos indígenas, acobertada por “falta de recursos”, têm levado a uma situação dramática e ataques cada vez mais fortes. Agora mesmo, tenta-se mudar no Congresso (mais de cem projetos) a legislação que transfere do Executivo federal (Funai) para o Legislativo (com forte presença da bancada ruralista) o processo de demarcação de terras indígenas.
São a cada dia mais frequentes as notícias de violências contra índios: foram registrados 759 assassinatos de indígenas e quilombolas em uma década, dos quais 390 em Mato Grosso do Sul. Diz o Conselho Indigenista Missionário (21/1) que os índios são mais de 1 milhão, mas para 107 mil a questão é especialmente grave, pois há 228 áreas com a demarcação ainda não homologada.
Tão grave quanto tudo isso é a decisão presidencial de vetar, no âmbito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dispositivo segundo o qual escolas indígenas não seriam obrigadas a usar os mesmos critérios das escolas “brancas” no processo de alfabetização; idiomas indígenas não seriam utilizados nesse processo de alfabetização. Porque esse uso de idiomas indígenas no ensino fundamental, médio, profissionalizante e superior foi considerado pelo Ministério do Planejamento como “contrário ao interesse público”. Que seria, então, um idioma nacional, nessa visão? Aquele trazido a partir do século XVI – quando já havia aqui milhões de indígenas – pelos colonizadores, especialmente os portugueses, que dizimaram, escravizaram índios?
As perdas com a condenação dos idiomas nativos podem ser muito graves, principalmente neste momento em que costuma ter consequências danosas o banimento das 160 linguagens nativas ainda faladas por aqui. Só um exemplo: o povo matsés, da fronteira Brasil-Peru, criou uma enciclopédia com mais de 500 páginas, com a descrição, em seu idioma, de cada doença encontrada entre eles, com o relato de causas, forma de enfrentá-las, onde encontrar os medicamentos das espécies naturais, foto de cada uma. Tudo compilado por cinco xamãs. E só a linguagem local seria capaz de identificar as particularidades do lugar e das espécies, pois os xamãs são os depositários maiores do conhecimento em cada etnia. O uso da linguagem nativa impediria também a apropriação dos conhecimentos por empresas da área farmacêutica.
A questão dos pajés e de seus conhecimentos é crucial, por sua capacidade de enfrentar as “doenças de índio” com o conhecimento tradicional. Doença de índio é diferente de doença de branco. E o pajé ainda utiliza nessa prática os conhecimentos do mundo dos espíritos. Sem xamãs pode desaparecer uma cultura indígena específica. Mas os jovens, cada vez mais aculturados, quase só se interessam pelas roupas, por tecnologias, modos de viver dos jovens brancos; não querem passar pelo longo período de reclusão (pode ser de anos) e ganho de conhecimentos que lhes permitirá virem a ser pajés. E sem eles se desvanecerá a cultura indígena.
Deveríamos repensar toda a questão da cultura indígena e nossa relação com ela, como sugeria o antropólogo francêsPierre Clastres, que viveu entre várias etnias no Brasil. Ele lembrava que nós, “civilizados”, costumamo-nos referir a índios não pelo que eles têm, mas pelo que não têm – não usam roupas, não têm dinheiro, não dominam nossas tecnologias. Esquecemo-nos da força de culturas em que a sociedade não delega poder a ninguém (o chefe não manda, não dá ordens; é o que mais sabe dessa cultura, da divisão do trabalho; é o grande mediador de conflitos). Um índio na força de sua cultura também não depende de ninguém: sabe fazer tudo de que precisa – a casa, a roça, seus objetos do cotidiano. E a informação é aberta, o que um sabe todos podem saber; como todos são autossuficientes, ninguém domina ninguém. É o que Clastres chama de “democracia do consenso”.
Uma boa lição para quem está vivendo, hoje, os dramas da relação da nossa sociedade com o poder.
Fonte: UNISINOS