quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Concílio Vaticano II e a América Latina

“O Concílio Vaticano II significou uma mudança para uma nova época nas relações entre Roma e as Igrejas da nova evangelização, de maneira particular com a América Latina”, escreve Marco Tosatti, em artigo publicado no sítioVatican Insider, 14-10-2011. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

João XXIII, em 11 de outubro de há quase 50 anos – o meio século será celebrado dentro de exatamente 12 meses –, inaugurava solenemente na Basílica vaticana o segundo Concílio Vaticano; um evento destinado a ficar assinalado como um momento crucial, para o bem ou para o mal, nos dois mil anos de história da Igreja. O Papa Roncallicomeçou a reunião de bispos, patriarcas e cardeais de todo o mundo com um discurso histórico, “Gaudet mater ecclesiae” (Alegra-se a mãe Igreja). Qual era o objetivo do Papa? Suas palavras o explicam: “É necessário que esta doutrina certa e imutável, na qual se deve crer fielmente, seja aprofundada e exposta segundo as exigências de nossos tempos. Outra coisa é, de fato, o depósito da Fé, ou seja, as verdades que contêm nossa venerável doutrina, e o modo como são anunciadas, sempre com o mesmo sentido e aceitas do mesmo modo.

Foram pronunciados rios de palavras e escritos sobre o Concílio, sobre seus efeitos e suas consequências; talvez nenhum acontecimento ao longo de toda a História da Igreja deu lugar a interpretações tão lacerantes. Mas uma coisa é certa, ultrapassando as posições inclusive opostas, e consiste em que o Concílio Vaticano II significou uma mudança para uma nova época nas relações entre Roma e as Igrejas da nova evangelização, de maneira particular com a América Latina. É certo também que a África e a Ásia viveram como protagonistas a estação pós-conciliar. Mas a simples força dos números e das raízes pluricentenárias da fé no subcontinente americano o converteram em protagonista.

Foi a própria natureza do Concílio, marcadamente pastoral, que ajudou neste processo; não foram proclamados novos dogmas, embora os mistérios da Igreja e da Revelação fossem enfrentados dogmaticamente, mas a palavra de ordem foi interpretar os “sinais dos tempos”; a Igreja teria que dar um salto na sua maneira de se aproximar da realidade mundial, e das feridas causadas pelas ditaduras ateias do século XX. Uma exortação que o Papa Roncallifez ressoar, falando dos “profetas das calamidades”: “Nas condições da sociedade humana estes são capazes de ver unicamente ruínas e problemas; vão dizendo que nossos tempos, comparados com os séculos passados, são piores em tudo; e chegam até o ponto de se comportarem como se não tivessem nada a aprender da história, que é mestra de respeito à doutrina cristã, à moral e à justa liberdade da Igreja”. Não foi pura casualidade o fato de que entre os 2.500 prelados e altos dignitários da Igreja que participaram nesse 11 de outubro da cerimônia celebrada em São Pedro, o bispo mais jovem fosse sul-americano: o peruano Dom Alcides Mendoza Castro, de 34 anos, bispo titular de Metre, auxiliar de Abancay, nascido em 14 de março de 1928, eleito bispo no dia 28 de abril de 1958, e arcebispo emérito de Cuzco.

A Igreja pré-conciliar era uma Igreja substancialmente branca e eurocêntrica, apesar da atividade missionária quePio XI havia posto em marcha, e de sua extraordinária sensibilidade para com a importância das Igrejas locais. Mas foi o Concílio que jogou luz sobre problemas, vitalidade e energia das Igrejas latino-americanas, que pediam uma maior consideração das suas particularidades culturais e religiosas.

E social. A América Latina era, como agora, um continente cheio de tensões e enormes contradições. O resultado de tudo isso foi a chamada Teologia da Libertação, que em suas diversas formas, algumas plenamente aceitas por Roma, e outras abertamente condenadas, é ainda hoje objeto de debate.

A Teologia da Libertação é uma reflexão teológica que teve início na América Latina com a reunião do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) de Medellín(Colômbia), em 1968, três anos depois do encerramento doConcílio Vaticano II, que tende a evidenciar os valores da emancipação social e política presentes na mensagem cristã. Entre seus precursores cabe recordar Gustavo Gutiérrez eLeonardo Boff, além do bispo brasileiro Dom Hélder Câmara. Em certa medida, suas raízes podem ser encontradas na reunião que recebeu o nome de Pacto das Catacumbas, assinado por 40 bispos em uma catacumba de Roma após o Concílio. Com este pacto estes bispos assumiram o compromisso de uma vida pobre a serviço dos pobres. Muitos eram latino-americanos, e na origem destePacto também estava Dom Hélder Câmara. Sua memória estava no ar em Medellín, embora por razões óbvias, nunca fosse mencionado.

O contexto histórico pós-conciliar na América Latina é extremamente conflitivo: uma enorme pobreza, regimes ditatoriais que lutam para manter privilégios, a crescente presença, inclusive militar, do marxismo. Difícil a posição em que se encontra a Igreja, que pede uma opção preferencial pelos pobres, mas que não tem que ser, como dizia João Paulo II, “nem exclusiva nem excludente”. A radicalização teológica da Teologia da Libertação foi seguida depois por uma participação cada vez maior dos leigos na vida da Igreja; que, contudo, nem sempre se mantinha no caminho da correta doutrina e da correta práxis.

As Comunidades Eclesiais de Base (apenas no Brasil nasceram dezenas e dezenas de milhares delas) constituíram um fenômeno explosivo. Se em Medellín, em 1968, os representantes da hierarquia eclesiástica sul-americana tomaram posição a favor dos mais deserdados e suas lutas, pronunciando-se a favor de uma igreja popular e socialmente ativa, na década seguinte começaram a emergir os problemas de extremismo e excessiva presença social da Igreja. Um continente no qual, entre outras coisas, um dos principais frutos do Concílio, ou seja, os movimentos eclesiais, encontrou um terreno prolífico para o seu desenvolvimento. E as teses expressas na presença deBento XVI durante a reunião do episcopado latino-americano de Aparecida, em maio de 2007, confirmam plenamente esta tendência, coerente com a de Medellín, de 1968: leitura da realidade através dos sinais dos tempos; opção preferencial pelos pobres, compromisso com a promoção humana e defesa da dignidade da pessoa. A isso se acrescenta, no marco atual da globalização, a consciência de que estes e outros problemas, de diferentes sinais, como a salvaguarda da Terra, não se reduzem apenas ao continente latino-americano, mas que afetam todos os países do mundo e a totalidade da humanidade. Não é por acaso que as duas únicas viagens intercontinentais realizadas até agora por Bento XVI tenham tido como destinos a América Latina e os Estados Unidos, onde a presença dos católicos de origem hispânica há ultrapassa os 30% da totalidade dos fiéis da Igreja de Roma.

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