segunda-feira, 31 de outubro de 2011

“O povo negro deu uma nova perspectiva às religiões cristãs”. Entrevista especial com Clóvis Cabral - Padre Jesuíta




IHU On-Line – Conte um pouco sobre sua descendência. Como ela influenciou sua escolha pelo catolicismo?

Clóvis Cabral – Minha mãe é uma ialorixá, sacerdotisa do candomblé e, por isso, eu vivi minha infância e adolescência no candomblé. Ialorixá pode significar três coisas que se resumem numa só: pode ser compreendida como esposa de Orixá; pode ser entendida como zeladora, protetora; e outro significado é mãe-de-santo, que acrescenta um elemento ao sacerdócio no candomblé. Eu seria metade do sacerdote que sou se não tivesse aprendido esse jeito de ser sacerdotisa que minha mãe tem. Além da faculdade de Filosofia e Teologia que nós, jesuítas, recebemos, eu também fui formado no terreiro por minha mãe e pela comunidade religiosa em que vivi um bom tempo de minha vida. Foi no terreiro que eu aprendi a rezar, aprendi as noções de fé. Minha catequese foi feita nesse ambiente religioso, que é diferente de uma paróquia. Você não precisa ir fazer catequese num dia determinado da semana. No terreiro, toda a comunidade é educadora. O processo educativo numa comunidade terreira é muito mais rico do que essa noção mestre e aluno.

Durante um bom tempo também tive contato com a Igreja Católica. Em Salvador, é muito comum essa convivência com as duas religiões. No meu caso, minha mãe era muito amiga de uma senhora que era o braço promocional, educacional e evangelizador da Paróquia local. Havia uma escola comunitária pertencente à paróquia, na qual eu fiz meus estudos. Lá participei da catequese típica de uma paróquia e fiz a primeira eucaristia. Mais tarde, entrei num grupo de jovens, mas nunca perdi a vinculação com o candomblé. Lembro de uma festa para comemorar o dia das mães que a gente fez no grupo de jovens e lá estavam presentes as minhas duas mães, Dona Odocrinalina, católica, e Dona América, ialorixá. Mais tarde fui ouvir perguntas como: como vocês podem estar juntos? Parece que as pessoas se ofendem com a capacidade que outras têm de conviver. Já minha aproximação com os jesuítas deu-se no final dos anos 1970, quando a Igreja tomou a decisão de se dirigir mais aos pobres. Alguns jesuítas foram morar na minha comunidade e ficaram amigos de minha mãe e, por conseqüência, meus também.

IHU On-Line – O senhor tem irmãos? E como eles vêem a inter-religiosidade da família?

Clóvis Cabral – Nós somos 16 irmãos e praticamente todo mundo lá em casa tem algum grau de iniciação no candomblé. Meu irmão mais velho é babalorixá e os outros irmãos e irmãs participam de alguns cargos na hierarquia de um terreiro. Todos os mais velhos tiveram a educação entre o candomblé e o catolicismo. Foi meu irmão mais velho que me convidou, por exemplo, para participar do grupo de jovens da Paróquia Santa Maria Gorete, localizada em Salvador. Mas em minha família também tenho um irmão que é casado com uma mulher sensacional que pertence a uma igreja evangélica. Também tenho parentes que são budistas. A minha família é a cara do Brasil. Temos uma capacidade de nos amarmos, ainda que tenhamos posições diferentes. Acima de tudo a gente aprendeu que precisamos nos amar, que precisamos lutar para mudar o mundo.

IHU On-Line – A mulher, assim como sua mãe, tem um papel de destaque nas religiões afro...

Clóvis Cabral – Na África, em algumas regiões, as mulheres tinham um peso político e religioso muito grande. Por exemplo, a famosa sociedade secreta das Ialodês teve um papel fundamental. Existe um conjunto de povos que foi constituído a partir da liderança de mulheres. Mas a África também tinha povos onde o homem era o mais importante representante. Não é correto dizer que só havia uma ou outra expressão. De fato, a primeira organização religiosa em Salvador, que é o candomblé, surgiu da liderança de mulheres. Se hoje o movimento negro ressurge forte, se temos instituições e as comunidades negras impõem a pauta em torno das questões afro afirmativas, isso só foi possível porque as mulheres negras exerceram um papel fundamental. Chamo isso de "divino feminino". É a revelação de Deus a partir do feminino.

IHU On-Line – Como hoje, 118 anos depois do fim da escravidão, podemos observar a inserção cultural e social da comunidade negra no Brasil?

Clóvis Cabral – O movimento negro renasceu de maneira mais consistente e forte a partir de 1978. No entanto, é evidente que antes disso já havia uma fermentação muito forte nas comunidades negras. Há 35 anos invocamos o dia 30 de novembro como o Dia da Consciência Negra, criticando o dia 13 de maio como o Dia da Abolição. Nós chamamos essa data de “Dia da Bulição”, pois buliram, mas não aboliram a escravidão. Com o Dia da Consciência Negra, surgiu uma idéia genial que foi retirar Zumbidos porões da humanidade e alçá-lo a essa categoria de herói nacional. Ele foi construído não pelos escribas do sistema ou pelos bajuladores da história. Zumbi é diferente de um Tiradentes, de um Marechal Floriano. Ele foi um herói construído pelo povo. Hoje o movimento negro é um ator na cena política contemporânea. Não podemos falar em transformação do País sem levar em consideração as negras e os negros organizados. Nós colocamos na pauta da política nacional a questão racial, o combate ao racismo.

IHU On-Line – A Pastoral Afro afirma que o racismo e a discriminação racial não são apenas maus hábitos, mas que violam direitos e geram inúmeras conseqüências. Podes falar um pouco sobre essas conseqüências?

Clóvis Cabral – Ao longo desses anos, temos dito que não basta considerar o racismo algo que só acontece no âmbito familiar e pessoal. Uma coisa é você não querer que sua filha namore com uma pessoa negra. Outra é você exercer um cargo público e não respeitar todas as pessoas, fazendo diferença e selecionando pessoas a partir de critérios raciais. Não se pode discutir a questão racial apenas no âmbito privado, que já é uma boa discussão. Mas quando você tem o poder de decidir e o que você decide atinge muitas pessoas, essa decisão não pode ser a partir de critérios racistas, porque aí você oprime, torna as pessoas reféns.

Na Pastoral Afro Brasileira, mostramos que as pessoas têm que mudar de vida, que o Evangelho é anúncio da boa nova para todos, nos chama à conversão, a repensar os valores, a rever as posições que temos. Mas, por outro lado, temos que garantir também o apoio a toda luta na produção de direitos e no combate ao racismo, usando os instrumentos legais que temos. Nossa questão não é somente pensar numa Teologia Afro Brasileira da Libertação. Queremos contribuir com o movimento negro, para construímos esse mundo possível que sonhamos tanto. Nem sempre as pessoas entendem isso.

IHU On-Line – Como a Pastoral tem contribuído para que a igreja possa conviver e dialogar com as religiões afro?

Clóvis Cabral – Esse é um grande desafio porque, infelizmente, o racismo marca profundamente a sociedade brasileira e a Igreja não é isenta disso. Há mais de 400 bispos no Brasil e só cinco são negros. De quase 19 mil sacerdotes talvez sejamos dois mil negros. Ainda há congregações e centros de formação para a vida religiosa e para o clero brasileiro que suspeitam da capacidade do jovem negro ser um bom sacerdote ou de assumir compromissos. Há pessoas que suspeitam da capacidade de um jovem negro se manter fiel na vida religiosa. Isso é terrível, porque o racismo está impregnado na nossa cultura, no modo como vemos o mundo. Não podemos sair por aí dando lições para as pessoas, mas queremos começar por nossa própria casa. Se a gente pode dialogar com judeus, protestantes, evangélicos, porque não podemos fazer isso com religiões de matrizes africanas? Nós, negros, também professamos a fé em Jesus Cristo. A primeira coisa que a Pastoral diz é que todas as religiões devem ser respeitadas e a primeira coisa que a igreja deve fazer é ter um outro olhar sobre essas religiões, conhecê-las, ultrapassar todos os preconceitos.

IHU On-Line – Como o senhor vê o conflito entre evangélicos e adeptos do candomblé?

Clóvis Cabral – O conflito me parece parte notadamente das igrejas neopentecostais, que tem sua expressão maior na Igreja Universal do Reino de Deus, na Igreja Internacional da Graça de Deus, que eu pessoalmente penso: são igrejas mesmo? Estão ligadas a que tradição cristã? Diferente da Igreja Luterana, onde encontramos o Ministério de Combate ao Racismo, semelhante à Pastoral Afro-Brasileira. Porém,também na Igreja católica, você também tem movimentos reacionários, que repetem esse discurso de satanismo das religiões de matrizes africanas, como nas igrejas neopentecostais. Eles não vêem legitimidade no diálogo, na conversa inter-religiosa. As igrejas neopentecostais têm programas que ficam horas desrespeitando as simbologias das religiões afro e os cantos sagrados. Isso é inconstitucional. Porém, as igrejas de raízes africanas têm pouco poder político nesse sentido. As igrejas pentecostais possuem bancadas dentro do Congresso que as defendem. Talvez por isso seja visível o desrespeito constitucional. É a velha luta do grande contra o pequeno.

IHU On-Line – O candomblé tem assumido uma grande força religiosa no Brasil, com presença significativa até nos Estados que têm tradição cristã, nestas últimas décadas. Sendo uma religião universal, como o candomblé está presente na América Latina?

Clóvis Cabral – Desconhecemos a realidade da diáspora afro latino-americana. A gente acha que só há negros no Brasil. Mas aArgentina possui uma comunidade afro - argentina. O que é o tango? A própria palavra tango, é banto, é africano. O tango, que nasceu na zona portuária de Buenos Aires, é a expressão cultural, musical e de expressão corporal de influência africana. NoParaguai, há uma comunidade grande de afro-paraguaios, que estão começando a reivindicar seus direitos. No Chile, que todo mundo vê como um país indígena, há uma comunidade afro-chilena, e no norte há uma população negra imensa, que cultiva azeitonas. No Peru, ao lado das culturas indígenas, você encontra os afro-peruanos. Há 15 dias realizamos na Venezuela o 10º encontro de Pastoral Afro Latino-Americana e Caribenha, que reúne os negros católicos em diálogo com as religiões de matrizes africanas de toda América Latina e Caribe. Esse é um mundo amplo que a gente desconhece. Pensamos que só veio negro para o Brasil, mas você pode percorrer a América Latina toda e encontrará essas recriações das matrizes africanas em cada território a partir do contexto regional.Sem contar nossa relação com os Estados Unidos, que têm também uma Conferência dos Negros Católicos Norte-Americanos. Eles têm vindo participar de nossos encontros e nós temos participado de movimentos produzidos por eles.

IHU On-Line – O sociólogo Reginaldo Prandi afirmou que as religiões afro-descendentes sobrevivem à sombra do catolicismo. Como o senhor vê isso?

Clóvis Cabral – Creio que essa frase dele pode ser interpretada numa perspectiva que encolhe o fenômeno do relacionamento da Igreja Católica ou a religião cristã. Evidente que “à sombra” não significa sem vida ou dependente, mas há verdade nessa afirmação. O catolicismo que existe no Brasil é muito diferente do catolicismo praticado na Europa, isso porque o catolicismo brasileiro foi afetado pelas religiões de matrizes africanas. Ou seja, o oprimido transforma a cultura e a opressão do seu opressor, dando a ela uma nova perspectiva. E foi o que o povo negro fez com a herança da fé cristã que recebeu.

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